Formação e profissão docente: cenários e propostas

Capítulo IV: A violência física como método de educar crianças e os saberes docentes

Maria Aparecida Alves da Silva

No Brasil e no mundo ocidental, os fatores preponderantes de mortes de crianças e de jovens não são mais as enfermidades de origens biomédicas e sim o estilo de vida. J. B. da Silva Júnior e H. T. Ocampo, na apresentação da publicação Impacto da violência na saúde do brasileiro, enfatizam que a maior ameaça à vida das crianças e dos jovens no Brasil não são as doenças, mas sim a violência (SILVA JR.; OCAMPO, 2005). Em outro importante documento, a Organização Pan-Americana da Saúde (Opas) ressalta que “a violência, pelo número de vítimas e pela magnitude de sequelas orgânicas e emocionais que produz, adquiriu um caráter endêmico e se converteu num problema de saúde pública em muitos paises” (ORGANIZACIÓN..., 1994, p. 5).

Dentre as diversas formas de violências sofridas pelas crianças e jovens no Brasil, a violência física é uma das mais frequentes. Na morbidade medida pelas internações hospitalares, verifica-se elevada ocorrência de traumatismo craniano em crianças. No Brasil, em 1998, foram internadas por essa causa 16.376 crianças menores de dez anos, com predomínio do sexo masculino. Desse total, 56,8% eram menores de cinco anos, sendo representativo o número de internações de menores de um ano (SOUZA; JORGE, 2005). Nas urgências dos hospitais brasileiros, 10% das crianças que se apresentam com menos de cinco anos são vítimas de violência física (AZEVEDO; GUERRA, 1995).

O relatório da Conferência Nacional de Bispos do Brasil (CONFERÊNCIA..., 1999) estima que 18 mil crianças sejam espancadas por dia no Brasil, e ao ano 6.570.000. Esse número é extraordinariamente cruel. Os resultados do inquérito de Vigilância de Violências e Acidentes (Viva) do Ministério da Saúde, realizado em diversas unidades de urgência e emergência do país no ano de 2007, indicam que a violência preponderante entre crianças, adolescentes, mulheres e idosos é a do tipo física (BRASIL, 2008). A violência sofrida por crianças, mulheres e idosos na maioria dos casos tem como local de ocorrência a residência, seja ela da vítima ou do agressor. Apenas entre os adolescentes as violências ocorrem mais na via pública.

Os resultados encontrados pela CNBB e pelo inquérito Viva confirmam as estatísticas registradas na maioria dos conselhos tutelares e delegacias de proteção de crianças e adolescentes espalhados pelo País. Nesses serviços, a maioria das denúncias de violência contra crianças e adolescentes refere-se à violência intrafamiliar do tipo física, quase sempre conjugada à negligência e/ou à violência psicológica. A maioria dos casos acontece dentro de casa e tem como principal agressor os próprios pais biológicos, haja vista que, a violência física, seja moderada ou imoderada, permanece ainda como um importante instrumento de disciplinamento de crianças na esfera das relações familiares.

Vários campos do conhecimento alertam sobre os riscos que a violência física praticada contra crianças pode acarretar. Os dados da morbimortalidade indicam os riscos de sequelas físicas ou de morte. As pesquisas na área da psicologia alertam para os danos emocionais ou comportamentais. Algumas pesquisas nacionais e internacionais (WEBER, 2001; ASSIS et al., 2004; STRAUS, 1991, VYGOTISKI, 2004) apontam os riscos ou disfunções que a prática de educar os filhos pela violência física pode desencadear no desenvolvimento da criança.

As pesquisas de Weber (2001), Weber e Viezzer (2004) e Vygotiski (2004) indicam que:

  • as punições físicas oferecem um modelo inadequado de os adultos lidarem com situações de conflitos, que é o uso da força, da violência;
  • a restrição imediata de um comportamento inadequado pelo uso da dor impede pais e filhos de conhecerem as origens das dificuldades e suas motivações, em razão do que fica mais difícil a sua real elaboração e superação;
  • a violência física facilita o surgimento de desvio no comportamento, como esconder ou dissimular o comportamento inadequado por medo da punição física; o comportamento desejado só acontece na presença do adulto que pune, pois o controle dele se dá por coação externa e não pela aceitação íntima da criança ou adolescente;
  • aparecem dificuldades na aprendizagem e na internalização das regras e dos valores de certo e errado, pois a violência física vem associada a sentimentos e sensações negativas;
  • aumentam-se as chances de aparecerem dificuldades na aceitação da figura de autoridade.

Os danos, as lesões, os traumas e as mortes decorrentes da violência física contra as crianças têm um elevado custo social, causam prejuízos econômicos, sobrecarregam o sistema de saúde, aumentando os gastos com emergência, assistência e reabilitação (BRASIL, 2005). No entanto, o maior custo é o humano, pois a violência física intrafamiliar tem destruído vidas, ferido corpos e mentes de muitas crianças. Ela provoca danos mentais e emocionais incalculáveis nas vítimas e em seus familiares. Apesar de serem estarrecedores, os números apresentados anteriormente revelam apenas a ponta do iceberg, ou seja, as violências que foram denunciadas ou notificadas. A violência física que atinge um número maior de crianças nem sempre é reconhecida como tal, pois ela se encontra naturalizada como um método educativo punitivo-disciplinar. Essa forma de violência comparece rotineira e metodicamente na vida de muitas crianças no Brasil.

A prática de bater para educar as crianças vem sendo superada paulatinamente na esfera da educação escolar. Na atualidade, muitos avanços conceituais e metodológicos foram conquistados pela escola, reduzindo a força da visão que apostava na necessidade do uso da punição física para atingir uma real aprendizagem. A escola, diferentemente da família, consolida-se como uma instituição mais aberta e plural, em que as brechas são maiores para mudança em relação aos modelos de educar crianças. No entanto, a família ainda permanece como uma detentora legítima do uso da violência física (ARIÈS, 1978).

De acordo com Assis e Deslandes (2005), o banimento da violência física na mediação da aprendizagem escolar de crianças ocidentais fez um importante contraponto à sua aceitação em outros processos educativos. Elas afirmam que


a “pedagogia da punição corporal” se tornou, definitivamente, prática ilegítima e arbitrária se exercida por professores, ou profissionais nos últimos 80 anos, indicando um avanço na consolidação dos direitos humanos. Contudo continua banalizada quando é exercida como forma de comunicação entre estudantes: em quase todas as partes do mundo (ASSIS; DESLANDES, 2005, p.49).


Autores como Redin (1996 apud ASSIS; DESLANDES, 2005), Adorno (1995) e Freire (2004), conforme uma proposta de mudança cultural, buscam por meio de suas propostas educativas desmistificar a naturalização do uso da violência como método de socialização das crianças. Na contramão do senso comum que naturaliza a prática da violência como instrumento pedagógico disciplinar, Redin (1996 apud ASSIS; DESLANDES, 2005) entende que a educação básica só será transformadora se a escola eleger como missão e identidade ser uma antítese da violência. Para o autor, a educação


deverá estabelecer e garantir relações objetivas e subjetivas que instalem nas crianças e nas instituições (educativas e/ou assistenciais) o sentimento inquestionável e irredutível de dignidade, auto-estima, de consideração, de respeito (...). Serão expurgados desta escola: as ameaças, as pressões, as provas humilhantes, os castigos. Nenhum homem humilhado será um cidadão pleno (REDIN, 1996, p 98).


Adorno (1995), em Educação e emancipação, compreende que a experiência formativa caracteriza-se pela difícil mediação entre o condicionamento social - o momento de adaptação - e o sentido autônomo da subjetividade - momento de resistência. Para o autor, uma das principais tarefas da educação é resistir à barbárie, pois esta é justamente o contrário da formação cultural. Ainda que o alcance e as possibilidades concretas da escola sejam por demais restritas, a desbarbarização do homem deve ser o seu principal objetivo. O autor, ao opor a educação à barbárie, expressa o desejo de que, “por meio do sistema educacional as pessoas comecem a ser inteiramente tomadas pela aversão à violência física” (ADORNO, 1995, p. 165). Em sua argumentação, evidencia que o elogiado objetivo de ser duro, proposto por algumas correntes da educação,


significa indiferença contra a dor em geral. No que, inclusive, nem se diferencia tanto a dor do outro e a dor de si próprio. Quem é severo consigo mesmo adquire o direito de também ser com os outros, vingando-se da dor cujas manifestações precisou ocultar e reprimir. Tanto é necessário tornar consciente esse mecanismo quanto se impõe a promoção de uma educação que não premia a dor e a capacidade de suportá-la, como acontecia antigamente (ADORNO, 1995, p. 116-117).


P. Freire (2004) afirma, na sua obra Pedagogia da autonomia, que educação é uma forma de intervenção no mundo. Nesse sentido, ele considera equivocada a educação que não reconhece as injustiças e não expressa a sua raiva contra ela. O ato de protestar contra a deslealdade, contra o desamor, contra a exploração e a violência assume, em sua concepção, um papel altamente formador. Crítico da educação que incentiva a resignação dos que estão em sofrimento, não soma a sua voz à dos que, falando em paz, solicitam aos oprimidos, aos esfarrapados do mundo, aos sofredores a sua resignação. Para esse autor, a humildade não deve ser construída com base na submissão à arrogância e ao destempero de quem desrespeita o outro. O educador não sai de seu papel, tampouco ocupa o lugar de terapeuta ou assistente social, quando reconhece o sofrimento e a inquietação de seus alunos.

De acordo com Geraldi, Messias e Guerra (1998), os professores ao fazerem escolhas e agirem em seu ofício, demonstram as influências e conhecimentos adquiridos na sua vida familiar e social. Ao entrar na sala de aula, o educador leva uma bagagem de suposições, crenças e valores implícitos e não--articulados sobre o contexto social da escolarização. Esse conhecimento social, que nem sempre é levado em consideração na formação de, com certeza, influencia o papel de educador.

Os professores, todos os dias, fazem escolhas que afetam a vida e as oportunidades de muitas crianças. Essas pequenas escolhas, que podem se manifestar no ato de ouvir, de dar sentido e valor ao que as crianças vivem, ou de se calar ante as violências sofridas por elas, têm implicações diretas no que as crianças aprendem sobre os conceitos de igualdade e justiça. Tais escolhas, que operam na cotidianidade da relação professor-aluno, baseiam-se no que o professor tem internalizado em sua formação pessoal e subjetiva, bem como em sua formação acadêmica e profissional.

Para conhecer qual o conteúdo da bagagem - conceitos, sentimentos e práticas - que os professores carregavam sobre a realidade de violência física vivida por seus alunos e a repercussão dela na profissionalização e prática docente foi realizada uma pesquisa com 24 professores em duas escolas públicas do ensino fundamental da cidade de Goiânia. O objetivo da pesquisa foi identificar os saberes a que o professor recorria para compreender e lidar com situações de violência física sofrida por seus alunos no ambiente intrafamiliar. Partindo do entendimento de que os saberes docentes do professor não se constroem apenas por intermédio do processo formal de graduação (GERALDI; MESSIAS; GUERRA, 1998), investigaram-se também as influências do contexto sócio-cultural que interagem na formação do professor.

A violência física contra crianças na educação escolar e familiar

Os resultados obtidos na pesquisa de campo indicaram que existe por parte de todos os professores participantes uma rejeição ao uso de toda e qualquer forma de violência física na educação da criança no espaço público da escola. De acordo com os entrevistados, na educação escolar, entre adultos e crianças, devem predominar o afeto, o diálogo, a negociação e a tolerância. A educação escolar precisa respeitar os limites da criança e promover o desenvolvimento, a autonomia e emancipação dos educandos.

No entanto, percebeu-se pelas argumentações dos sujeitos entrevistados que nem sempre o que é valorizado na educação da criança no espaço escolar serve à educação da criança na família. A fala de uma das professoras pesquisadas ilustra essa realidade. Em uma entrevista ela informa, que, como coordenadora, sempre recomenda aos seus colegas professores que mantenham a calma e o controle nos momentos de conflito com os alunos. De acordo com tal professora “o professor deve manter a serenidade, ter mais estrutura [...] e não se colocar no mesmo nível da criança”. Imediatamente após fazer toda essa explanação, faz a seguinte reflexão: “enquanto professora, às vezes, eu faço melhor com as crianças da escola do que com os meus próprios filhos [...] meu sonho era poder educar os meus filhos sem bater, mas eu não consigo”.

A rejeição da violência física na educação dos alunos nem sempre se estende aos filhos. Os saberes que os professores construíram sobre a maneira de educar crianças na escola não se generalizam para a educação de seus próprios filhos. Os professores apresentam uma proposta de educação e de autoridade que não serve ao mundo da vida privada familiar. A reflexão feita pela professora citada acima, explicita uma contradição, pois aceita a prática da violência física na relação educacional entre pais e filhos e não mais na relação entre professor e aluno. Uma explicação possível para essa contradição é que por ser mais claramente explicitada a proibição de bater nos alunos, os professores não admitem que sentem a vontade de praticar esses atos de violência e preferem, como dizem Groppa e Sayão (2004), delegar essa punição aos pais e cobrar deles para que o façam.

Na educação de crianças, no espaço privado da família, certas formas de violência física são toleradas e até cobradas. Nas questões que tratam da autoridade na família, aparece a avaliação negativa em relação à omissão dos pais ante os maus comportamentos dos filhos. De forma implícita ou explicita, alguns professores desaprovam os pais que não punem os filhos quando eles adotam um comportamento considerado inadequado. A frase dita por um professor ilustra essa desaprovação: “Autoridade na família é muito importante, cada vez mais os pais estão perdendo essa autoridade. Quando chamamos os pais para contar alguma coisa que ele [o aluno] faz, a primeira coisa que eles fazem é entregar os filhos em nossas mãos. Eles falam que não sabem o que fazer com os filhos”.

Ao manifestar a aceitação dos métodos violentos na educação da criança no espaço privado da família, os professores expressam saberes que se distanciam dos ideais emancipatórios. A educação familiar que tolera a violência física contra a criança tem como princípio a idéia de controle, coação e sujeição da criança. A idéia de uma autoridade forte, que mantém a ordem, a disciplina e o controle por meios violentos, não é defendida pelos sujeitos pesquisados na esfera da vida pública, como é o caso da educação escolar.

No entanto, esse tipo de autoridade é legitimado no espaço privado da família. O pai ou mãe que não exerce o poder punitivo corre o risco de serem avaliados como uma pessoa omissa ou, segundo ressalta uma professora, podem ser considerados “até como fraquinhos”. Os resultados encontrados na pesquisa evidenciam esta contradição ao sinalizar que os avanços conceituais e práticos construídos ao longo da história da educação ainda não adentraram a esfera da vida privada. O diálogo, o respeito às fases de desenvolvimento, os limites e os direitos da criança não constituem uma realidade na educação familiar de muitas crianças no Brasil.

Tanto professores como alunos vivenciam a contradição permanente sobre concepções de educar. Na escola, a educação concebida pelos professores pesquisados tem a finalidade de promover a crítica, a consciência e autonomia da criança, por intermédio do respeito, do diálogo e do afeto. Na família, a educação de crianças tem outros fins, tais como o controle e sujeição da criança. Na família, a educação das crianças sustenta-se em valores e práticas conservadores. A criança como sujeito de direitos é um valor que sobrevive apenas da porta para fora, já que depois da soleira da casa, as coisas são diferentes, pois o passado está vivo!

Os professores diante da violência física intrafamiliar contra crianças

Em concordância com o pensamento de Contreras (2005), é fundamental que o professor promova a desnaturalização dos acontecimentos que cercam a realidade dos alunos. Com base nessa visão, entende-se que o docente, ao discutir a situação de violência física vivida por seus alunos, deva promover com eles e seus pais uma reflexão crítica em relação à prática educativa que tem como instrumento a violência física. É importante que essa prática seja contextualizada para que não se responsabilizem as crianças e seus comportamentos pela ocorrência das violências.

Enfrentar uma situação de violência intrafamiliar contra criança não é uma tarefa fácil para nenhum profissional, seja ele um trabalhador da área da saúde, da assistência social ou da educação. Essa situação desperta muitas dúvidas e temores, pois envolve crenças e valores muito arraigados na cultura. Um receio presente em muitas falas dos sujeitos entrevistados é o de piorar a situação da criança se intervir ou denunciar a violência identificada. Mas, para não enfrentarem o desconforto e o sofrimento que as situações de violência acarretam, alguns profissionais negam essa realidade. Essa negação não foi evidenciada nos resultados da pesquisa, pelo menos nos casos de violência física imoderada.

Ante a identificação de uma situação de violência física imoderada, os professores pesquisados não demonstraram um distanciamento emocional do problema, ou seja, uma naturalização da violência. Muito pelo contrário, eles expressaram um sofrimento e uma preocupação intensa com a situação vivida pelas crianças. Relataram que constantemente convivem com sentimentos de impotência e frustração, pois ainda que levem o caso para os serviços de proteção, tais como o Conselho Tutelar, Delegacia ou Ministério Público, a situação da criança pouco se altera. Sentem-se impotentes, sozinhos, não têm apoio sindical ou das secretarias de educação, ou dos outros pais. Na verdade não há nenhuma forma de organização social que as apóie. Essa mesma reação não acontece em relação à violência física considerada moderada. Nesse caso, a avaliação da gravidade da violência física com base em sua intensidade e sua aceitação está incorporada ao senso comum brasileiro, uns tapinhas, um puxão de orelhas, não fazem mal às crianças. Essa forma de pensar está presente mesmo em documentos oficiais como é demonstrado no Código Penal (BRASIL, 1940) e no próprio Estatuto da Criança e do Adolescente (BRASIL, 2004), que só prevêem penalidades para as punições imoderadas.

Como já se referiu anteriormente, a tendência da maioria dos pesquisados, quando identificam sinais de violência física em seus alunos, é tentar lidar com a situação dentro da própria escola, evitando fazer a denúncia ao Conselho Tutelar. O primeiro motivo apontado pelos professores para não se formalizar uma denúncia é o receio de que as crianças venham a sofrer retaliações do familiar denunciado. Outro motivo é a questão sócio-econômica das famílias de alunos das escolas públicas. Os educadores avaliam que esta é tão grave que a questão da criança ser maltratada passam a ser secundários. Na entrevista individual, uma professora relatou que, em alguns casos, pondera se a violência que a criança sofre é mais grave do que a condição de miserabilidade da família, afirmando que “tem famílias onde falta tudo, que são desprovidas de tudo”. Para ela uma denúncia só agravaria mais a situação. Ela parece temer que uma intervenção do Conselho Tutelar agrave ainda mais a situação de penúria dessas famílias. Reconhece um sofrimento familiar e que as instituições não vão resolver a realidade socioeconômica vivenciada e que, portanto, não haverá mudanças positivas para as crianças.

Um terceiro motivo que contribui para que não se denunciem os casos de violência é o medo das conseqüências que essa denúncia pode trazer para a escola ou para o próprio denunciante. Alguns familiares dos estudantes, segundo o depoimento de uma professora, parecem ser ligados a grupos violentos, em razão do que os professores temem por sua própria integridade física, evitando denunciá-los. Um último motivo que poderia ser colocado refere-se à falta de confiança, sentida pelos educadores, nos serviços de proteção oferecidos no município de Goiânia. Alguns professores relatam que os casos de violências encaminhados ao Conselho Tutelar não alcançaram resultados favoráveis à situação vivida pelas crianças. Não apareceu como motivo para não se fazer denúncia ao Conselho Tutelar a preocupação com a privacidade da família, ou o respeito ao pátrio poder.

Em razão desses medos e desconfianças, os professores investem em uma aproximação com a família, a fim de orientá-la. Uma questão a ser aprofundada posteriormente é que, no entanto, esses receios e desconfianças dos docentes não inibem a denúncia ao Conselho Tutelar, quando os casos identificados envolvem violência sexual. Esses casos são considerados os mais graves. Parece que para tais situações as contradições que apontamos anteriormente entre o vivenciado na escola e socialmente não se fazem presentes. O ataque ou o abuso sexual é sempre violência, não há dúvidas. Uma professora expressa esse entendimento dizendo: “a violência física ocorre aqui na escola, é uma situação muito difícil, mas eu fico indignada é quando ocorre a violência sexual”. Nos casos de violência sexual, considera-se a natureza, a qualidade do ato sexual e não sua quantidade ou freqüência. Como essa violência é considerada mais grave pelos professores, ela tende a ser denunciada ao Conselho Tutelar.

Com a violência física, não é a natureza, a qualidade do ato que determina o reconhecimento da violência, mas sim a sua quantidade. O ato de coagir, provocar dor ou sofrimento por meio de agressões físicas em uma criança só é reconhecido pelos professores como uma violência, se houver um excesso. Em virtude dessa compreensão, só as situações de violência física imoderada recebem atenção e preocupação dos professores. Mas nem sempre essas situações são encaminhadas ao Conselho Tutelar. Portanto pode-se interpretar que o entendimento sobre o fenômeno da violência é importante, pois altera as formas de o professor agir (CHARLOT, 2005).

Compreendem-se os receios e descréditos dos professores sobre as consequências de suas possíveis denúncias. A atitude adotada por eles de não investir apenas em medidas punitivas em relação aos pais agressores representa um avanço, pois pode ser interpretada como indicação de uma proposta educativa também para os familiares dos alunos. Um processo educativo que dê qualidade às relações entre pais e filhos é fundamental. No entanto, a opção de não denunciar os casos de violência pode implicar riscos de vida para a criança, por não intervir diretamente no padrão familiar violento.

Outro aspecto crítico refere-se à culpabilização da criança pela ocorrência da violência. Esta pesquisa pode sinalizar que, implicitamente, para certos professores o mau comportamento das crianças justificava a violência sofrida por elas. Em uma das escolas pesquisadas, quando se relatou um espancamento sofrido por uma aluna, algumas educadoras tentaram justificar a partir das qualidades negativas da criança, como se por tais atributos a fizessem merecedora da violência sofrida.

Alguns relatos mostraram que há uma tentativa de diálogo com os estudantes para que se controlem e evitem comportamentos que provoquem a agressão de seus pais. Orientar crianças sobre os seus comportamentos e os possíveis riscos que eles podem acarretar, constitui uma conduta necessária, desde que não a responsabilizem, com seus comportamentos, pela violência que os pais cometem contra elas. A orientação não deve ter como princípio a idéia de resignação e conformidade: “A vida é mesmo assim, seu pai estava nervoso, você tem que entender, até Cristo apanhou”. Expressões como essas são muito usadas nos seus discursos. Elas tentam cumprir um papel de consolo, mas, de forma prejudicial, terminam por reproduzir o discurso que banaliza e naturaliza a violência. Paulo Freire (2004) critica o incentivo à resignação dos que estão em sofrimento. A construção de uma cultura de paz nas relações familiares não deve se sustentar na submissão ou na obediência cega dos filhos, mas sim no entendimento de que pais e filhos são sujeitos de direito. Nesse sentido, os conflitos e impasses têm que ser resolvidos por intermédio do diálogo e do entendimento recíproco e não pela violência, seja moderada ou imoderada.

A violência física intrafamiliar contra crianças e a formação de professores

A atuação do docente não deveria consistir em resolver problemas como se fossem nós cegos que após serem desatados desapareceriam (SACRISTÁN, 1995). Na prática docente, só em raríssimas situações os casos de conflitos resolvem-se de forma pontual. No cotidiano, o professor vê-se compelido a tomar decisões sobre questões complexas e que não têm solução a curto prazo. As situações de violência física contra crianças fazem parte dessas questões. De acordo com os relatos dos pesquisados, a formação acadêmica e mesmo a continuada pouco têm oferecido para auxiliar os professores a lidar com os dilemas que as situações de violências físicas implicam.

De acordo com Barth (1993), é determinante na construção de um conhecimento o número de encontros de um indivíduo com determinado saber, assim como a qualidade da ajuda que teve para interpretar esse saber. Pelo que apontam os resultados da pesquisa, a formação acadêmica não tem possibilitado a seus discentes acesso a saberes sobre o fenômeno da violência física intrafamiliar. A formação continuada, de forma esporádica e pontual, tem abordado o tema da violência, mas sempre com enfoque na sexualidade ou nas drogas, ou nas ações violentas de alunos. O contato dos professores com o tema da violência física contra alunos é muito restrito e a ajuda que eles recebem para entender esse fenômeno, em geral, não decorre da formação docente, mas das trocas com os próprios pares.

Os professores pesquisados relatam não ter recebido nenhuma informação, seja na formação inicial ou na continuada, sobre o tema da violência física intrafamiliar. Os saberes sobre esse tema foram construídos no contexto sócio-cultural em que vivem. Tais saberes se estabelecem por meio da própria experiência, das discussões entre colegas de trabalhos, amigos ou familiares. As falas de duas professoras sinalizam como a formação dos docentes está distante da realidade da violência física vivenciada pelos alunos e identificada na sala de aula. Uma diz: “não recebi nenhuma informação da formação acadêmica, eu acho que eles [os professores da faculdade] próprios não têm conhecimento dos tipos de violência que a gente enfrenta na escola”; e a outra diz: “Foi Deus que me deu sabedoria. Na hora, no corpo a corpo é que decido como agir. Tento agir como mãe ao lidar com as situações de violência”. Os dois depoimentos revelam como os professores estão desprovidos de conhecimentos que os auxiliem a lidar com tais situações. Ante a ausência de uma formação adequada é até compreensível o apelo que uma das professoras pesquisadas faz à intervenção divina.

Os resultados encontrados na pesquisa indicam que deixar que a prática ensine aos professores a lidar com questões, como a da violência física intrafamiliar contra crianças não tem resultado em avanços na garantia e proteção dos direitos da criança. Pela dimensão e complexidade do fenômeno da violência física contra crianças, entende-se ser necessário um suporte teórico para que o professor possa ultrapassar suas dúvidas, conflitos, contradições, e construir um contraponto significativo sobre um saber sobre e um saber como atuar em relação à violência vivida por seus alunos (SACRISTÁN, 1999).

Para Charlot (2005), a teoria é fundamental na formação do professor, mas precisa ser contextualizada na prática docente. Assim, cabe às instituições formadoras envolverem-se com os desafios que a prática do professor produz. A realidade da violência física na vida das crianças impõe mais um desafio à formação do docente. Ainda que seja importante a troca de conhecimentos e experiências entres os pares, faz-se necessário que eles se apropriem de conhecimentos que permitam ampliar o entendimento da violência física para além do senso comum e de sua realidade imediata. As informações repassadas nas entrevistas dos professores indicam que a prática docente em si não tem permitido que eles identifiquem as contradições existentes entre suas concepções de educação, de autoridade e de criança e a prática educacional que tem como método a punição e o disciplinamento das crianças por meio da violência física.

Como afirma Sacristán (1995), o suporte do conhecimento à prática docente ainda é muito restrito, o que tem se configurado em uma das causas que levam muitos professores a atuar sem se questionar sobre suas convicções, e em conformidade com mecanismos adquiridos culturalmente por meio da socialização, mais do que com o suporte do saber específico, de tipo pedagógico. Os resultados encontrados pela pesquisa empírica realizada nas escolas de Goiânia corroboram a hipótese do autor. Em relação à realidade da violência física vivida por seus alunos, os professores pesquisados ressaltaram a influência da socialização informal sobre os seus saberes.

Concorda-se com Souza (2006) que considera primordial que a sala de aula constitua-se como espaço de negociações e de produção de novos sentidos e significados, dos diferentes conceitos e valores trazidos das experiências cotidianas dos discentes e docentes. Para a autora, o processo de reelaboração dos significados produz uma reordenação das atividades mentais dos alunos e professores participantes na atividade. As experiências intersubjetivas implicadas em todo esse processo geram novos sentidos e poderão substituir os que compunham o conhecimento experiencial. No entanto, o professor, como dirigente desse fórum, tem que ter ele mesmo vivenciado processo semelhante de construção de novos sentidos e valores em sua formação. Por essa razão, é importante que esse aspecto faça parte permanente das metodologias praticadas em sua formação, seja continuada ou inicial.

Os pesquisados possuem raiz cultural comum. Nasceram, foram criados e vivem em um mesmo contexto cultural que tradicionalmente aceita a prática de bater nos filhos para educá-los. Embora se aceite que os processos de aprendizagens sociais influenciam na aceitação do uso da violência física na educação dos filhos, é importante considerar que esses processos não determinam os valores e as práticas de todos os sujeitos, pois existe uma relação dialética entre o indivíduo e a sociedade (VYGOTISKI, 2007). Os valores sobre a violência física, expressos por uma professora que divergiu dos demais entrevistados, negando o uso da violência como instrumento educativo, indicam que não existe um determinismo cultural. Existem sujeitos que constroem valores dissonantes, que destoam do já estabelecido e que nos mostram as possibilidades de mudanças, pois operam em outro sentido, o de desnaturalizar a violência física.

Cabe ressaltar que a idade não fez diferença na aceitação ou não dos métodos educativos violentos. A professora que expressou de forma mais veemente a sua aprovação à punição física tinha 23 anos, é a mais jovem dos sujeitos pesquisados. E a única professora que demonstrou desaprovar a prática de bater nos filhos para educá-los tinha mais de quarenta anos. Os resultados encontrados na pesquisa corroboram a argumentação de Barth (1993), que afirma que a idade não determina concepções de uma pessoa, mas sim o número de encontros que ela teve com determinado saber, assim como a qualidade de ajuda que teve para interpretar esse saber. Para essa autora o “saber é o sentido que damos à realidade observada e sentida num dado momento” (BARTH apud FIORENTINI et al., 1998, p. 322).

A investigação realizada não trabalhou com a idéia de resposta certa ou errada. Ante os resultados encontrados, não se adotou uma atitude de julgamento ou de depreciação dos educadores. A forma como estes entendem ou agem, em relação à violência física intrafamiliar identificada em seus alunos, não é incongruente com as crenças e práticas do contexto social em que eles estão inseridos. O fato de não conseguirem ainda compreender a complexidade do fenômeno da violência física intrafamiliar contra a criança, com suas funções e riscos, é um desafio a ser enfrentado por todos os envolvidos no processo educacional, uma chamada de atenção para que se priorize uma formação aberta a estas questões.

Encontrou-se no campo de pesquisas professores com muitas qualidades pedagógicas e didáticas, e também com dúvidas e dificuldades na prática docente. Nas entrevistas individuais, todas as professoras da uma das escolas falavam com orgulho de sua profissão, expressando um vínculo positivo com a escola. Essas professoras demonstraram um grande envolvimento afetivo com seu trabalho e seus alunos, sem indicar desânimo ou cansaço aparente nas atividades cotidianas. Algumas delas beiravam os sessenta anos, no entanto, participavam de brincadeiras e das atividades comemorativas com entusiasmo e proximidade dos alunos. Essas senhoras fantasiavam-se e se integravam às brincadeiras desenvolvidas na escola com uma alegria quase juvenil. Ao falar da relação professor e aluno, elas sempre ressaltavam a importância da afetividade. Em suas falas, apesar de aparecerem sutis críticas ao autoritarismo da direção, registraram que sentem prazer no trabalho que executam. Algumas moravam no próprio bairro da escola e demonstravam um enraizamento com a comunidade.

Os professores da outra escola trabalhavam em salas de aulas improvisadas. Algumas salas foram instaladas em baixo de tendas de lona. A sala dos professores fica no pátio externo sob uma mangueira e é protegida do sol por uma tenda de lona de quatro metros quadrados. Apesar das precárias condições de trabalho, todos demonstravam um intenso compromisso com a sua atuação profissional. Na relação professor e aluno, esses docentes destacaram a importância da afetividade acentuando a importância do engajamento e compromisso político com a realidade dos alunos.

Os educadores, como sujeitos vivos, apresentam em si contradições e idiossincrasias. Porém, os resultados encontrados na pesquisa não devem servir para desqualificá-los, mas sim permitir uma maior compreensão sobre como os professores têm construído os seus saberes sobre a violência física intrafamiliar contra crianças.

Os dados encontrados promovem outros questionamentos além dos que foram construídos no início desta investigação, tais como: qual o contato que os professores têm com as teorias que buscam compreender e desnaturalizar a violência física? Eles têm recebido ajuda para melhor interpretar tal fenômeno? Pelo que indicam os resultados da pesquisa, nem a formação inicial, nem a continuada têm tratado de discutir e aprofundar os conhecimentos sobre a questão da violência física intrafamiliar contra crianças. Eles lidam com essa situação por si mesmos.
Em relação às situações de violência física intrafamiliares sofridas pelos alunos, a formação ainda não parece ter conseguido oferecer contribuições significativas à pratica dos professores. Muito provavelmente, a falta desse suporte leva vários deles a atuarem de acordo com convicções adquiridas em sua experiência cultural, que está permeada de atitudes de aceitação e de submissão ao uso da violência física como método educativo para as crianças. Nesse sentido, entende-se que é fundamental que a formação inicial e a continuada contribuam para a compreensão sobre o fenômeno. Caberia à formação de professores fazer um contrapeso na balança e oferecer aos docentes conhecimentos sobre esse fenômeno de modo a ajudá-los a ultrapassar o nível de conhecimento sincrético ligado ao senso comum.

O enfrentamento desta questão impõe além do suporte teórico, que os professores recebam apoio institucional ao lidarem com tais situações de violência. Às instâncias governamentais faz-se exigências para que acolham as denúncias realizadas de maneira a dar resolutividade aos casos encaminhados. Nos que envolvem riscos à integridade física da escola ou do professor, caberia ao poder público oferecer proteção e suporte a eles. O acompanhamento do andamento dos casos denunciados pelos diferentes setores da Secretaria de Educação poderia propiciar aos educadores uma maior garantia de que os casos não cairão no esquecimento. O estudo de casos, as trocas de experiências entre os docentes e a supervisão continuada poderiam contribuir com a formação do professor, permitindo, assim, minimizar dúvidas e inseguranças sobre a forma de lidar com tais situações de violência.

Considerações finais

Considerado como posse do mundo adulto, o corpo da criança foi e continua alvo de múltiplas formas de violência. A humanidade, ao longo de sua história, desenvolveu um saber fazer para agredir o corpo das crianças. Esse saber fazer violento mantém-se na educação dos filhos. O uso da dor e do sofrimento físico para prevenir ou punir um comportamento tido como incorreto ou inadequado é ainda um recurso utilizado e legitimado na educação de crianças no espaço familiar.

A prática de bater para educar as crianças possui raízes muito profundas, é um costume arraigado na cultura. A aceitação dessa prática não se restringe apenas aos pais, muitos filhos demonstram serem tolerantes em relação às violências físicas que sofrem dos pais. A violência física costuma ser encarada pelos filhos como uma prática normal de disciplinamento parental.

É comum ouvir de crianças vítimas de violência física que elas mereceram apanhar. Elas dizem que não sentem dor, que os pais têm o direito de bater, e a criança deve apanhar quando fizer algo errado. A aparente conformidade dos filhos deixa evidente o poder da legitimidade conferida à prática de bater quando ela visa uma dita finalidade educativa. Mas não é sem sofrimento que as crianças convivem com os métodos educativos violentos. O sentimento de raiva, ambivalência afetiva e o ódio pelos pais não deixam de ocorrer. No entanto, são ocultados pela idealizada imagem da autoridade familiar. Ainda que seja regida com violência, arbitrariedade e injustiça, essa autoridade jamais deve ser contestada pelo bom e obediente filho. A idealização do amor familiar afirma de forma incontestável que os pais sempre fazem o bem a seus filhos. Ante esse amor idealizado, resta aos filhos aceitar a dor e o sofrimento perpetrados pelos pais, pois são para o seu próprio bem ou para o bem da sociedade.

A dor e o sofrimento são associados à idéia de um amor incondicional. Com a manipulação dos afetos a submissão das crianças é mais garantida. Nem raiva, nem revolta ela pode expressar, pois isso poderia comprometer a imagem do filho idealizado em nossa sociedade. O filho deve ser sempre dócil e incondicionalmente grato. Não é fácil se contrapor às práticas violentas da família, ainda porque historicamente elas são consideradas a mais correta forma de educar as crianças. As práticas educacionais violentas são constitutivas da identidade cultural dos professores pesquisados. Negar tais práticas significa ignorar a educação dada pela família de origem e, ao mesmo tempo, o modo que atualmente esses professores educam os próprios filhos.

Punir, disciplinar com violência, muitas vezes, é considerado pelos pais um sacrifício necessário à boa formação dos filhos. Bater nos filhos, dar palmada não constituem violência, mas sim um gesto de amor e de compromisso com a formação de pessoas honestas e de bem. As punições físicas são um mal necessário, pois com elas os filhos aprendem a respeitar as leis familiares e, por consequência, temer a leis sociais instituídas.

Ao utilizar a violência física como meio de coação e controle, a microestrutura familiar reproduz o modelo dominante das macroestruturas sociais. A violência é um meio, dentre outros, de estabelecer ou manter uma relação de obediência e de domínio sobre os considerados inferiores, e o modelo de socialização dominante na vida privada da família reflete as relações sociais da vida pública. Esse modelo de sociabilidade orienta-se no sentido oposto ao da emancipação e da liberdade dos sujeitos. Extravagante ou recatada, a violência sempre cumpre o mesmo papel, subjugar e controlar o outro. Portanto, são inconciliáveis os métodos violentos com a educação que tem como compromisso promover o desenvolvimento e a autonomia do sujeito. O que é considerado crítico no método educativo que se utiliza da violência física não é a sua intensidade, mas sim sua finalidade, que é controlar e manter as ações das crianças por meio da dor e do sofrimento físico.

Em um contexto de aceitação e naturalização da violência física, os professores pesquisados foram educados como filhos, e como pais educam os seus filhos. Conforme esse prisma, os professores têm percebido e lidado com o fenômeno da violência física intrafamiliar. O processo de produção de significados e sentidos da prática cotidiana do professor é atravessado pela emoção e pela sua história de vida. A relação de afeto com a figura parental que pune ou disciplina com violência leva a uma reorganização do conhecimento do professor sobre a violência física sofrida por seus alunos.

A educação escolar acumulou, ao longo de sua história, conhecimentos e práticas que permitem aos professores da atualidade educar as crianças por meios não-violentos. Sabe-se que o rompimento com as práticas punitivas e disciplinares que utilizavam métodos violentos não aconteceu sem resistência, mas, pouco a pouco, a escola vem erradicando essas práticas. Os professores construíram um saber fazer na educação de crianças que faz um importante contraponto na aceitação e naturalização do uso da violência física na educação das crianças dentro das relações familiares, e esse saber fazer da educação escolar precisa ser compartilhado com as famílias.

Os saberes desenvolvidos na educação escolar têm muito a contribuir para a superação das práticas violentas desenvolvidas na educação familiar. Os direitos da criança começam a ser respeitados na educação escolar. É preciso que esses direitos adentrem a porta dos lares brasileiros. Um dos grandes desafios da atualidade é assegurar que as crianças, tanto na sua vida pública como na sua vida privada, possam ser respeitadas como sujeitos de direitos na educação que recebem de sua própria família.


REFERÊNCIAS

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Publicado no livro Formação e profissão docente: cenários e propostas. Coordenação Valter Soares Guimarães - Goiânia. Ed. da PUC Goiás. 2009.

(Re) Descobrindo faces da violência sexual contra crianças e adolescentes

Capítulo II: Notificação compulsória dos casos de violência no sistema único de saúde: contribuições de Goiânia

Maria Aparecida Alves da Silva

Nos meses de novembro e dezembro de 2006, ocorreu o evento de capacitação denominado Rede de Atenção a Mulheres, Crianças e Adolescentes em Situação de Violência de Goiânia (1), cujo objetivo era sensibilizar os profissionais da Rede de Atenção de Goiânia sobre a importância da notificação compulsória dos casos de violência (2). Para cumprir essa finalidade, fez-se um resgate histórico sobre a implantação da notificação de violência na cidade de Goiânia e expuseram-se as contribuições da experiência de Goiânia na construção da notificação nacional. Pesquisadores do “Projeto: Ações de Enfrentamento da Violência Sexual Infanto-juvenil em Goiânia e Região Metropolitana” (convênio nº. 159/2005 firmado entre a Universidade Católica de Goiás e a Secretaria Especial de Direitos Humanos da Presidência da República), que acompanharam como observadores as reuniões dessa capacitação, sugeriram, ao final, que o relato oral das contribuições de Goiânia fosse transformado em textos, para posterior publicação.

Transformar o relato oral de alguns participantes do processo de construção da notificação de casos de violência da cidade de Goiânia em uma memória escrita é a proposta desse artigo. Assim como de costume dos goianos a história da notificação será contada meio que na forma de um “causo”, onde se mistura personagens e eventos a partir de relatos orais de alguns protagonistas envolvidos. Inicia-se esclarecendo como foi organizada da referida capacitação. A referência central de toda a narrativa é a da Rede de Atenção de Goiânia. Conta-se um pouco da história dessa rede a partir de lembranças ainda vivas dos principais envolvidos e do suporte de documentos oficiais de diversas instituições governamentais. E é com a Rede de Atenção de Goiânia que principia a criação da notificação goiana.

Os documentos oficiais do Ministério da Saúde (MS), da Secretaria Municipal da Saúde de Goiânia (SMS) e da Executiva da Rede de Atenção de Goiânia foram importante fonte de pesquisa. Também conta-se com depoimentos orais de técnicos e gestores envolvidos nesse processo, com relatos de Norma A. Cardoso, representante do Centro de Estudo, Pesquisa e Extensão Aldeia Juvenil (IDF/UCG), de Lucimarta Santana da Cunha (NPVPS) e de Rafael Dídimo Santos (da Central de Informática), ambos da SMS de Goiânia. Conta, ainda, com depoimentos de Marta Maria Alves da Silva, da Área Técnica de Vigilância e Prevenção de Violências e Acidentes do Ministério da Saúde, e de Otaliba Libânio de Morais Neto, do Departamento de Análises de Situação de Saúde da Secretaria de Vigilância em Saúde do MS.

Ainda que a Ficha de Notificação/Investigação de Violência Doméstica, Sexual e/ou Outras Violências seja compreendida como uma conquista de muitos, mesmo assim relata-se o esforço goiano presente na construção da notificação nacional, cujo fio condutor será a Rede de Atenção de Goiânia e a posterior implantação da ficha de notificação dos casos de violência desenvolvida em Goiânia, no ano de 2004. A ênfase dada no texto à área da saúde deve-se ao fato de ser o campo de maior conhecimento e atuação da autora. No entanto, é importante deixar claro que essa área não foi o único, tampouco o principal segmento social de Goiânia a contribuir com a notificação goiana.


A notificação dos casos de violência traz em si as forças sociais que a constituíram. É um produto coletivo. Ela representa um pensamento, uma forma de agir no mundo. Está sob a égide de que todas as pessoas são iguais e de que ninguém tem o direito de tratar o outro como objeto. E que a violência não é uma expressão “natural” do ser humano. Por isso a violência deve ser identificada, prevenida e punida. Ao narrar a história da criação da Rede de Atenção de Goiânia e sua contribuição na construção da ficha nacional, o que se pretende é demonstrar como a história coletiva de um lugar, e de suas relações, pode ser formadora e transformadora. E, por conseguinte, influenciar e afetar a atuação profissional de técnicos e gestores que posteriormente participaram da construção da Ficha de Notificação/Investigação de Violência Doméstica, Sexual e/ou Outras Violências.


Capacitação sobre importância da notificação dos casos de violência.

O Núcleo de Prevenção das Violências e Promoção da Saúde (NPVPS) da Secretaria Municipal da Saúde de Goiânia (SMS) tem como rotina acompanhar todas as notificações compulsórias dos casos de violência que são emitidas pelas Unidades de Saúde (municipais, estaduais e federais) de Goiânia. Apesar de a implantação da notificação nacional ter-se iniciado no mês de agosto de 2006 em Goiânia, esse acompanhamento revelou que existe ainda uma elevada subnotificação dos casos de violência. As notificações que chegavam ao NPVPS, na maioria das vezes, provinham dos mesmos serviços de saúde. Os serviços que mais notificam apresentam duas características em comum: 1) refere-se a profissionais ou equipes técnicas com um histórico de participação em várias formações da Rede de Atenção de Goiânia e 2) possuem uma baixa rotatividade em seu quadro funcional.

Essas características indicam uma correlação entre o número e a freqüência de notificações enviadas ao NPVPS e o número de profissionais capacitados pela Rede de Atenção de Goiânia lotados nos serviços. Diante dessa correlação, o NPVPS compreendeu que era fundamental retomar as capacitações continuadas da Rede, organizando, portanto, um evento específico sobre a Ficha de Notificação/Investigação de Violência Doméstica, Sexual e/ou Outras Violências. (3) O seu público-alvo foram os profissionais dos serviços que compõem a Rede de Atenção de Goiânia que ainda não haviam passado por nenhum processo de capacitação, ou seja, de educação permanente.

Os membros da Executiva da referida Rede que foram responsáveis pelo planejamento e execução dessa capacitação avaliaram que não cabia, naquele momento, dar explicações didáticas sobre a forma de preenchimento da ficha, tampouco descrever as implicações legais e administrativas decorrentes da não-realização da notificação. A formação deveria resgatar a história da criação da Rede de Atenção de Goiânia e da notificação de casos de violência implantada em Goiânia no ano de 2004, mostrar como a experiência de Goiânia colaborou na efetivação da ficha nacional e por fim discutir os dilemas que se apresentam no momento de notificar os casos de violência. Como aquecimento da discussão dos dilemas, utilizou-se o filme Escolha de Sofia.

O prioritário, para os organizadores da capacitação, naquele momento era dar sentido e historicidade à notificação. O importante era que os participantes refletissem sobre o poder de suas escolhas, enfim que eles percebessem as possíveis conseqüências, tanto no plano coletivo como individual, de suas opções. Com essa metodologia, pretendia-se evitar que os profissionais continuassem enxergando a notificação como mais um papel sem sentido a ser preenchido na rotina de seu trabalho. Na visão dos organizadores, era fundamental ressaltar a energia, a vida pulsante, que estava presente na notificação, pois a criação da notificação nacional dos casos de violência era o resultado de uma longa história de luta de homens e mulheres espalhados por todo o Brasil.

Construção coletiva das ações e dos instrumentos da Rede de Atenção a Mulheres, Crianças e Adolescentes em Situação de Violência de Goiânia: pacto permanente entre os atores

A Rede de Atenção de Goiânia tem suas raízes fincadas no solo fértil dos movimentos sociais organizados da capital goiana (4). Porém a Rede só se efetivou quando, na esfera do poder público municipal, havia gestores e técnicos comprometidos com as causas da cidadania, ou seja, quando estes integraram gestões de caráter democrático-popular e transformaram o seu compromisso em políticas públicas e ações concretas para a garantia de benefícios à população que deveria ser atendida pela Rede de Atenção de Goiânia.

Os dois pilares que sedimentaram a fundação da Rede de Atenção de Goiânia foram a força dos segmentos sociais organizados de Goiânia e a decisão política de técnicos e gestores comprometidos com a defesa dos direitos da criança, do adolescente e da mulher. No entanto é importante ressaltar que muitos desses gestores e técnicos integram ou emergiram dos mesmos movimentos sociais que lutaram para a construção da Rede de Atenção de Goiânia. Esse fato permite uma possível interpretação: a de que a efetivação da Rede de Atenção de Goiânia deu-se mais pela influência dos movimentos de defesa das mulheres, das crianças e dos adolescentes, do que por força das diretrizes políticas definidas nas gestões municipais.

Ao ser concebida, a Rede de Atenção de Goiânia trazia impressa em sua gênese, de forma indelével, a semente da participação democrática e o engajamento de vários atores sociais. Com a marca dessa origem democrática, o conceito de rede adotado pelo Fórum Goiano pelo Fim da Violência e Exploração Sexual de Crianças e Adolescentes e pelo Fórum Goiano de Mulheres se define como uma articulação política, entre atores iguais e/ou instituições, não-hierárquica (5). Essa articulação se fundamenta no reconhecimento da importância dos demais parceiros institucionais, na colaboração, na cooperação e no compartilhamento de saberes, ações, objetivos, projetos e poderes.

Para a então coordenadora do Fórum Goiano de Mulheres, Rurany Silva:


"A articulação do Fórum Goiano pelo Fim da Violência e Exploração Sexual Infanto-Juvenil como Fórum Goiano de Mulheres foi muito importante para a efetivação da Rede de Atenção de Goiânia. Antes, esses atores trabalhavam em espaços sociais distintos com a temática da violência. A partir da articulação, passaram a discutir e a buscar formas de viabilizar a construção da Rede, somando-se assim a força e o poder de pressão de cada Fórum".


No entendimento desses dois Fóruns, a Rede de Atenção de Goiânia deveria ser constituída por laços institucionais ou por relações interpessoais. Ela teria como papel fundamental a elaboração de propostas de políticas públicas que promovessem o enfrentamento do fenômeno da violência. Outro papel estratégico era a articulação entre os atores sociais, governamentais e não-governamentais, envolvidos na promoção dessas políticas públicas. Após definir seus princípios e dinâmicas norteadoras, a Rede de Atenção de Goiânia tinha como tarefa urgente promover a capacitação dos profissionais para o atendimento especializado de pessoas em situação de violência, seja de ordem física, psicológica ou sexual, a ampliação e implantação de serviços nessa área e a otimização dos recursos humanos e materiais.

E como garantir tais metas no transcurso das rotinas dos serviços de atenção, seja governamentais ou não-governamentais? Como articular serviços de naturezas tão distintas? Como organizar as ações para que elas não se sobrepusessem umas às outras? Como padronizar fluxos e procedimentos no atendimento, para que não se revitimizassem as pessoas envolvidas em situações de violência?

Visando alcançar tais objetivos, dois instrumentos foram construídos pela coordenação da Rede de Atenção de Goiânia: (a) um com caráter organizativo interinstitucional permanente e (b) outro de planejamento integrado das ações desenvolvidas pelos atores da Rede de Atenção de Goiânia.

Foi criado um fórum deliberativo e executivo, que recebeu a denominação Comissão Executiva da Rede, cuja composição é paritária, para garantir a integração permanente dos diferentes atores envolvidos na Rede de Atenção de Goiânia. As diversas instituições que formam essa Rede têm assento permanente na sua Comissão Executiva. A principal missão da Executiva é acompanhar a execução dos planejamentos conjuntos realizados pela Rede, e os seus encontros são ordinários, uma vez por mês.

O outro instrumento construído foi o Planejamento Estratégico Situacional (PES – Rede de Atenção de Goiânia). O primeiro trabalho ocorreu em maio de 2001, em seis etapas distintas. A primeira etapa foi o da apresentação, de forma sistemática, dos atores envolvidos na Rede de Atenção de Goiânia. Cada instituição – governamental ou não-governamental – realizou uma descrição detalhada sobre os seus recursos físicos e humanos, bem como dos serviços oferecidos, e buscou saber o que gostariam de receber das demais instituições que compunham a Rede de Atenção de Goiânia. Esse momento tinha como objetivo o reconhecimento mútuo dos envolvidos na Rede, para que estes compartilhassem suas dificuldades e necessidades.

A segunda etapa deu-se de forma mais operativa, pois teve como finalidade definir os níveis de atenção dos serviços prestados na Rede; já a terceira etapa compreendeu a definição do nível de atenção, seguindo-se a padronização pelos níveis de complexidade adotada na saúde pública – Atenção Básica, Secundária e Terciária; na quarta etapa do PES, apresentaram-se os principais problemas existentes nos serviços; na quinta etapa, procedeu-se à exposição das possíveis propostas de resolução e ao esboço de um fluxo preliminar para os encaminhamentos dos casos que envolviam situações de abuso sexual e estupro; na sexta etapa, definiram-se as operações prioritárias do PES, a saber: a implementação de uma referência e contra-referência resolutiva, um maior investimento na formação dos profissionais e a criação de um serviço de atendimento ao abusador.

A partir do PES, especificamente na operação que definia a implantação de uma referência e contra-referência resolutiva, inicia-se a construção da ficha de notificação (6) dos casos de violência ocorridos em Goiânia. O entendimento das instituições representadas no Planejamento Estratégico era de que, sem um formulário único, em que se notificassem os casos de violência, e sem um banco de dados, que centralizasse as informações desse formulário, era inviável a efetivação de uma referência e contra-referência eficaz.

Como ocorreu nas demais operações e subações, definiu-se no PES um grupo de trabalho que seria responsável pela efetivação da proposta do Formulário Único e da Central de Dados. Esse grupo foi composto por representantes da Unidade de Saúde Mental – “Casa Água Viva/SMS de Goiânia –, do Centro de Estudo, Pesquisa e Extensão Aldeia Juvenil CEPAJ/UCG, do Hospital Materno Infantil da Secretaria Estadual da Saúde de Goiás/SES de Goiás, do Centro Integrado Médico e Psicopedagógico (CIMP/SES de Goiás) e do Grupo Transas do Corpo. A coordenação do grupo ficou a cargo da Divisão da Saúde da Mulher, da Criança e do Adolescente da SMS de Goiânia.

A proposta de criação de uma ficha de notificação para os casos de violências ocorridos em Goiânia não surgiu de uma deliberação técnica administrativa do nível central da SMS de Goiânia, mas de uma necessidade concreta dos serviços de atenção que integravam a Rede de Atenção de Goiânia. Os profissionais desses serviços acreditavam que a ficha de notificação e a central de dados eram fundamentais para a qualificação dos encaminhamentos e acompanhamentos dos casos de violência entre os serviços de diferentes níveis de atenção.

Como a implantação da Rede de Atenção de Goiânia propiciou um aumento das denúncias e da demanda por atendimentos dos casos de violência no município de Goiânia, sentiu-se a necessidade de organizar essa demanda de forma sistemática, conforme relata Norma Cardoso:


"A Rede de Atenção passa a ter um fluxo de funcionamento, e uma outra demanda surge, a do registro do atendimento dos casos de violência que passam pelas unidades de atendimento que compõem a Rede. [...] Quando na Rede entra em pauta a discussão sobre o registro de dados do atendimento e a criação de um banco de dados, se coloca, então, a discussão da ficha de notificação".


Ao propor o registro dos casos de violência, a preocupação central dos serviços era a de não revitimizar as pessoas envolvidas. A notificação deveria viabilizar um encaminhamento adequado, para evitar que os usuários perambulassem por muitos serviços sem receber a atenção prioritária para o seu caso. Com isso, evitar-se-iam constrangimentos e novos agravos à saúde, caso ocorresse demora na realização de procedimentos como o da contracepção de emergência e da profilaxia de DST/AIDS.

A proposta da central de dados tinha como principal objetivo o monitoramento dos casos, diante das preocupações com a estruturação de um registro estatístico mais fidedigno dos casos de violência. Porém não era essa a principal demanda dos serviços. O mais importante era que a central de dados viabilizasse um monitoramento eficiente dos casos atendidos dentro da própria Rede de Atenção de Goiânia, para que eles não se perdessem, propondo-se, assim, a criação da ficha de notificação e da central de dados dos casos de violência, para qualificação da referência e contra-referência dos casos atendidos nos serviços prestados pelas entidades que compõem a Rede de Atenção de Goiânia.


O Grupo de Trabalho Referência-Contra-Referência: subação Formulário Único (7) e criação da Central de Dados

A primeira tarefa do Grupo de Trabalho responsável pela elaboração da proposta do Formulário Único e da Central de Dados foi conhecer todos os tipos de registros existentes nos serviços da Rede de Atenção de Goiânia. Logo de início, percebeu-se a diversidade de informações priorizadas em cada registro, diante das características distintas dos atendimentos, o que se constituiu um dos maiores obstáculos enfrentados pelo grupo de trabalho, na tarefa de propor uma ficha de notificação única e padronizada. A delimitação das informações priorizadas na notificação só foi concluída depois de uma longa negociação entre os serviços da Rede de Atenção de Goiânia. Um outro desafio foi conciliar em um mesmo formulário informações que contemplassem os segmentos que atendiam a crianças e adolescentes e os que atendiam a mulheres.

Rurany Silva considera:


"A construção de consensos sobre o fenômeno da violência, por meio de um processo de muito diálogo e reflexão entre os dois Fóruns, foi muito importante. Assim, na construção da Rede de Atenção de Goiânia foi contemplado a multiplicidade e a especificidade de cada grupo populacional, seja ele de crianças, adolescentes ou de mulheres em viviam situações de violência. E isso já aparece de forma concreta na primeira proposta de ficha de notificação construída pelo grupo de trabalho da referência e contra-referência. Estabelecer consensos sobre a relação de gênero como um elemento estruturante da Rede foi uma difícil, mas crucial tarefa do movimento de mulheres".


Depois de selecionadas as informações que integrariam a ficha de notificação, propôs-se um modelo-piloto para ser avaliado pela Comissão Executiva da Rede, cuja base, para a sua construção, foi a ficha de Atendimento Multidisciplinar à Pessoa em Situação de Violência Sexual (8). Além disso, foram fundamentais a contribuição do modelo Ficha de Acolhimento, da Unidade de Saúde Mental Casa Água Viva (SMS de Goiânia), e as discussões do Grupo de Trabalho responsável pela formação dos profissionais da Rede. Sobre essas contribuições, a representante do Centro de Estudo, Pesquisa e Extensão Aldeia Juvenil (CEPAJ/PROEX/IDF/UCG), ressalta:


"Este modelo foi modificado, ampliado a partir das experiências das entidades que tinham seus próprios registros. O Grupo de Trabalho que era responsável pelo planejamento e execução das formações da Rede de Atenção de Goiânia também contribuiu com a elaboração da ficha ao indicar aspectos importantes que deveriam comparecer nesse novo registro".


No entendimento dessa representante, o processo de construção da ficha de notificação e da central de dados contribuiu com o movimento de efetivação e fortalecimento das ações da Rede de Atenção de Goiânia. No entanto, trata-se de um processo que não seguiu um movimento linear de avanços, pois houve também alguns retrocessos.


"Foi difícil a construção de um instrumento único, que satisfizesse as necessidades de cada instituição. A utilização de um instrumento único também implicava mudanças àquelas instituições que já tinham algum tipo de registro ou que não faziam nenhum registro [...]. De forma lenta, este processo contribuiu para avançar na constituição da própria Rede de Atenção, ajudando na articulação de seus atores, pois estes tinham que conhecer e utilizar um instrumento único".


A conclusão da proposta da ficha de notificação do Grupo de Trabalho ocorreu no final do segundo semestre de 2002, sendo o modelo-piloto entregue à Comissão Executiva da Rede de Atenção de Goiânia, que o aprovou, e deliberou, por conseguinte, que a implantação da ficha e a posterior criação da central de dados seriam de responsabilidade técnica da SMS de Goiânia. Com isso, foi considerado extinto o Grupo de Trabalho constituído para aquela finalidade.


Implantação da Ficha Multidisciplinar de Notificação de Suspeita ou Confirmação de Violência na Rede de Saúde de Goiânia


De acordo com a técnica responsável do NPVPS da SMS de Goiânia, o processo de implantação da ficha de notificação dos casos de violência iniciou-se com o trabalho de sensibilização dos gestores e técnicos dos Distritos Sanitários (DS), que, por sua vez, realizaram o mesmo trabalho nas unidades de saúde. Após, realizou-se uma ação mais operativa, de orientação de preenchimento e encaminhamento adequado dos casos de violências identificados na rede de saúde.

A ficha de notificação foi implantada em toda a rede de saúde de Goiânia no ano de 2004. As Unidades de Urgência e Emergência receberam uma atenção especial, pois essas identificavam, historicamente, um número maior de ocorrência de casos de violência. Estabeleceu-se um acompanhamento permanente das equipes dessas unidades, considerando-se que era fundamental atualizar as informações e acompanhar os encaminhamentos realizados pelos profissionais. Para a técnica do NPVPS da SMS de Goiânia, essa priorização foi estratégica, pois com o tempo as unidades de urgência e emergência tornaram-se uma referência para as outras unidades de menor porte e complexidade.

Todo o processo de sensibilização e adesão das unidades de saúde à Ficha Multidisciplinar de Notificação de Suspeita ou Confirmação de Violência (9) iniciou-se no segundo semestre de 2003. A ficha de notificação, nesse período de implantação, tinha a função de agilizar a identificação dos casos de violência e qualificar os encaminhamentos. Sobre tal característica da ficha de notificação de Goiânia, Lucimarta Cunha afirma:


"Na época a nossa preocupação era ter um instrumento que orientasse os profissionais de saúde em seu trabalhar. O usuário, que sofreu alguma forma de violência, não deveria sair das unidades sem um atendimento adequado em relação à sua saúde. Na verdade tinha embaixo da ficha o protocolo de DST, que dava orientação para os profissionais sobre os exames que precisavam ser feitos, do tempo necessário dos exames. Então, para nós naquele momento o importante, a preocupação maior, era com o atendimento".


Para formalizar a implantação da referida ficha e ampliá-la para os serviços da rede conveniada e privada, o SMS de Goiânia expediu a Portaria n. 152, em 5 de maio de 2004, cujo artigo primeiro é como segue:


"Todos os estabelecimentos de saúde públicos e privados no Município de Goiânia são obrigados a preencher e encaminhar à Secretaria Municipal da Saúde de Goiânia a “Ficha de Notificação de Suspeita ou Confirmação de Violência contra a Mulher à Criança e/ou Adolescente”. (GOIÂNIA, 2004b)".


Na visão da técnica do NPVPS, a referida Portaria foi fundamental para a implantação da ficha, uma vez que informava a todos os profissionais de saúde da Rede que a notificação não era apenas uma deliberação de uma área técnica específica, mas uma diretriz da gestão da Secretaria de Saúde. Desse modo, toda a rede do SUS – rede pública, privada e conveniada da saúde – obrigatoriamente deveria efetuar a notificação dos casos de violência, os quais não se restringiam a crianças e adolescentes, mas também a mulheres.


Efetivação do Sistema de Informação dos Casos de Violências: Banco de Dados Municipal


Com a implantação e regulamentação da Ficha Multidisciplinar de Notificação de Suspeita ou Confirmação de Violência, tornou-se urgente a elaboração de um sistema de informação que registrasse os dados coletados na notificação. De acordo com Rafael Dídimo, técnico da Central de Informática da SMS de Goiânia, o sistema foi desenvolvido na linguagem Delphi 7.0 e o banco de dados Interbase. Trata-se de sistema composto por cinco tabelas de dados, os quais permitem a entrada dos seguintes tipos de informação: 1) fonte notificadora (unidade de saúde, DS, profissional responsável pela notificação); 2) características das vítimas de violência; 3) tipo de violência; 4) características do provável autor da agressão e 6) encaminhamentos e condutas.

Para a emissão dos relatórios estatísticos, desenvolveu-se uma rotina de exportação de dados, mediante a transferência dos dados do banco Interbase para o formato DBF, utilizado para tabulação de dados pelo TABWIN. O setor de informática da SMS de Goiânia desenvolveu ainda arquivos de definições e conversões (DEFs e CNVs) para o TABWIN. Com essa medida, facilitava-se a análise dos dados digitados.

O Sistema de Informação implementado na SMS de Goiânia permitiu um melhor monitoramento e compreensão dos dados identificados na Ficha Multidisciplinar de Notificação de Suspeita ou Confirmação de Violência. A primeira apresentação oficial dos relatórios do banco de dados dos casos notificados ocorreu no dia 12 de agosto de 2004, no seminário realizado pelo Hospital de Urgências de Goiânia, SES de Goiás, em cujo evento contou-se com a presença de um representante do MS, o qual solicitou o encaminhamento dos dados e das informações sobre a ficha de notificação de Goiânia à área técnica do Ministério. Dessa forma, Goiânia passou, a partir de então, a compor a equipe que construiria a ficha nacional de notificação dos casos de violência.


Participação de Goiânia na construção da Notificação Nacional dos Casos de Violência


O movimento pela construção de políticas públicas, em Goiânia, para atuação na prevenção das violências e na atenção às mulheres, crianças e adolescentes que viviam situações de violência, foi uma expressão local de uma luta comum tanto no plano nacional como no internacional. A efetivação da Rede de Atenção de Goiânia, com a posterior implantação da Ficha Multidisciplinar de Notificação de Suspeita ou Confirmação de Violência, estava em consonância com as recomendações da Conferência Internacional de População, realizada em Cairo, no ano de 1994, bem como da Conferência Internacional da Mulher, evento ocorrido em Beijing, no ano de 1995, e ainda da IV Conferência Mundial Sobre a Mulher, transcorrida em Pequim, na data de 1995, e da Convenção de Belém do Pará, denominada Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência Contra a Mulher, realizada em 1995.

Além disso, contemplava as resoluções do Congresso Mundial contra Exploração Sexual Comercial de Crianças e de Adolescentes, transcorrido em Estocolmo, no ano de 1996, e o Plano Nacional de Enfrentamento da Violência Sexual Infanto-Juvenil, definido pelo Conselho Nacional de Direitos da Criança e Adolescente (CONANDA/Brasil, 2000). Esse movimento encontrava também expressões em espaços governamentais ligados à área da Saúde Pública. A partir de 2000, ganha força no MS a proposta de implantação de uma política nacional de redução de morbimortalidades por causas externas – acidentes e violências.

No sentido de efetivar essa política, o MS publica em 2001 a Portarias de n° 737/GM (Brasil, 2001a), que instituiu a Política Nacional de Redução da Morbimortalidade por Acidentes e Violências, e a Portaria de nº 1.968/GM (BRASIL, 2001b), que regulamentava a obrigatoriedade da Notificação de Maus-Tratos contra Crianças e Adolescentes no SUS. Para implementar o propósito e as diretrizes definidas dessa política nacional, o MS instituiu, no âmbito do SUS, a Rede Nacional de Núcleos de Prevenção das Violências e Promoção de Saúde, que foi regulamentada pela Portaria nº 936, de 2004.

A partir de demandas sociais, particularmente do movimento feminista, em 2003 o Presidente da República promulga a Lei de n° 10.778, de 24 de novembro (BRASIL, 2003a), que instituía a notificação compulsória de violência contra a mulher. Essa lei foi regulamentada no MS pela Portaria de nº 2.406/GM, de 5 de novembro de 2004 (BRASIL, 2004). Com as duas regulamentações, tornou-se imprescindível a construção de um instrumento de coleta padronizado para o registro dos dados das notificações de violência contra crianças, adolescentes e mulheres.

A Portaria de nº 2.406 já incluía em seu anexo uma proposta de instrumento de notificação a ser utilizado pelos profissionais de saúde. Esse instrumento foi elaborado pela equipe técnica das Coordenações de Doenças e Agravos Não-Transmissíveis e de Análises e Informações Epidemiológicas do Departamento de Análises de Situação de Saúde (DASIS) da Secretaria de Vigilância em Saúde (SVS) do MS. Apesar de sistematizada, a notificação proposta pela portaria ainda não havia passado por uma testagem. No ano de 2005, o MS selecionou serviços que tinham experiência acumulada com notificações de casos de violência, para testar a ficha nacional.

De acordo com Otaliba Morais, diretor do DASIS/SVS/MS, havia duas experiências em âmbito nacional que são exemplos de sistemas de notificação de violência: a de Curitiba e a de Goiânia. A experiência de Curitiba, que vem de um longo tempo, tem uma inserção estruturada nos serviços de saúde. O que diferencia a experiência de Curitiba é o consolidado trabalho de vigilância em saúde, com um banco bem estruturado, cujos dados coletados pela notificação passam por uma constante e sistemática análise. A ficha de Curitiba é um instrumento utilizado nas escolas, no SOS Crianças e demais serviços de assistência social. As 109 redes locais, coordenadas por regionais intersetoriais, viabilizam uma melhor organização dos encaminhamentos e conseqüentemente reduzem a subnotificação dos casos de violência contra criança e adolescente.

O município de Goiânia, desde 2004, já realizava a notificação de violências contra crianças, adolescentes e mulheres em toda a sua rede de saúde (GOIÂNIA, 2004b). Apesar de a experiência de Goiânia ser mais recente, comparada com a de Curitiba, ela apresentava uma característica que era inédita no país. A ficha de notificação incluía a notificação de violências contra a mulher em todas as unidades de saúde de Goiânia, mesmo antes da regulamentação do MS. Em maio de 2005, a SMS de Goiânia é selecionada para participar do pré-teste da ficha de notificação nacional proposta pelo MS. Participaram também dessa testagem as Secretarias Municipais de Florianópolis e de Ribeirão Preto.

Em 9 de junho de 2005 realizou-se a oficina de avaliação do pré-teste da ficha nacional, processo esse coordenado pela Área Técnica de Vigilância, Prevenção e Controle de Violências e Acidentes/Coordenação Geral de Doenças e Agravos Não-Transmissíveis (CGDANT do DASIS/SVS/MS). Essa oficina de avaliação contou ainda com a participação da Área Técnica de Saúde da Mulher/Departamento de Ação Programática Estratégica da Secretaria de Atenção em Saúde/MS, de representantes da Secretaria Estadual de São Paulo e das Secretarias Municipais de Campinas e Belo Horizonte, além de representante da ONG IPAS Brasil, do Rio de Janeiro.

Exclusões, inclusões e modificações de alguns campos foram propostas pelos participantes da oficina de avaliação do pré-teste. A representante do NPVPS da SMS de Goiânia, sugeriu a inclusão de alguns dados que já eram coletados na ficha de notificação de Goiânia. A coordenadora Marta Silva, Área Técnica de Vigilância, Prevenção e Controle de Violências e Acidentes/VPCVA do MS, afirma que a participação de Goiânia na oficina foi muito importante, pois apresentou sugestões que



"(...) foram fundamentais para a modificação na ficha e contribuíram para a versão final da ficha nacional. Um dos pontos que vale destacar foi a necessidade de que a ficha incorporasse também as notificações de violências contra pessoas do sexo masculino e não somente mulheres, o que já vinha ocorrendo em Goiânia em relação a crianças e adolescentes tanto do sexo feminino como masculino".


Entre maio e novembro de 2005 muitos ajustes forma feitos na ficha de nacional. O seu layout foi alterado para que seguisse a padronização do SINAN. Essa padronização permitiria no futuro um georeferenciamento das informações e uma posterior inclusão dos dados da ficha de notificação de violência no Sistema de Informação do SINAN. Foi acrescentado na ficha um campo que informava se a violência notificada era uma suspeita ou se já estava confirmada. Marta Silva ressalta que após a avaliação do pré-teste houve um processo de discussão e pactuação com várias áreas internas do MS. Consensuou-se que a ficha atenderia às especificidades relacionadas a cada ciclo de vida, independente do sexo e considerando as várias tipologias e naturezas das violências, sejam elas interpessoais ou autoprovocadas.

A ficha nacional atenderia ainda às demandas existentes, inclusive no que diz respeito à obrigatoriedade de notificação de violências contra crianças, adolescentes, mulher e idoso. Segundo Marta Silva, com essa proposta única, o MS tem como meta a substituição dos anexos das Portarias nº 1.968/2001 e 2.406/2004, que obrigam a notificação de violências contra mulher, adolescente e mulheres respectivamente.

Dessa forma, a ficha assumiu a sua versão final, sendo denominada Ficha de Notificação/Investigação de Violência Doméstica, Sexual e/ou Outras Violências. Ela foi implantada no país inicialmente em 39 secretarias de saúde municipais localizadas nas 27 unidades federativas, cuja coleta iniciou-se em agosto de 2006. Para viabilizar essa implantação houve um incentivo financeiro do MS repassado pela Portaria nº 1.356/2006.
Em agosto de 2006, a SMS de Goiânia substitui a sua ficha de notificação local e passou a utilizar a Ficha de Notificação/Investigação de Violência Doméstica, Sexual e/ou Outras Violências, aprovada pelo MS.

Além da participação no pré-teste da ficha de nacional, a SMS de Goiânia participou também da implantação do projeto Vigilância de Violências e Acidentes em Serviços Sentinela – VIVA – proposto pela CGDANT/DASIS/SVS/MS. Esse projeto, apresentado em março de 2006 para as SES e SMS, possui dois componentes: vigilância contínua de violência doméstica, sexual e/ou outras violências; e a vigilância de violências e acidentes por meio de pesquisa de demanda e inquérito realizada em serviços de urgência e emergência. A ficha nacional apresentada nessa ocasião seria o instrumento de notificação do componente da vigilância contínua.

Nesse mesmo mês, a SMS de Goiânia aderiu ao projeto VIVA e, em parceria com o Instituto de Patologia Tropical e Saúde Pública da Universidade Federal de Goiás/UFG, deu início à pesquisa sobre as ocorrências de acidentes e violências no Hospital de Urgências de Goiânia/HUGO da SES de Goiás. A coleta de dados foi feita por amostragem e ocorreu durante todo o mês de setembro. Trata-se de pesquisa que adotou as fichas preconizadas pelo MS, cujos resultados foram enviados ao Ministério da Saúde em março de 2007.



Importância da experiência goianiense na efetivação da notificação nacional dos casos de violência


A experiência de implantação da Ficha Multidisciplinar de Notificação de Suspeita ou Confirmação de Violência de Goiânia exerceu um papel importante na formação de técnicos e gestores que atuaram diretamente na implementação da notificação nacional. O atual diretor do DASIS/SVS/MS destaca que sua participação na implantação da notificação de casos de violência em Goiânia foi como gestor municipal. De acordo com ele, a experiência de Goiânia imprimiu-lhe uma perspectiva positiva em relação à efetivação da notificação nacional. Ele entende que a experiência de Goiânia gerou um cenário de facilidades na operacionalização da implantação da ficha de notificação nacional:

Primeiro, porque foi uma experiência formadora, auxiliou-me a compreender que a notificação é um importante instrumento de intervenção e vigilância. Segundo, por demonstrar que é viável no âmbito da gestão colocar a questão da violência como uma prioridade e a partir daí fazer com que isso seja implementado e operacionalizado na prática, com a notificação, com a montagem da rede, com a articulação intersetorial. Acho que isto foi a grande contribuição de Goiânia.

A implantação da vigilância na área da violência já era preconizada desde 2001, com a aprovação da Política Nacional de Redução da Morbimortalidade por Acidentes e Violências. Era também uma exigência legal definida pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (BRASIL, 1990), pelo Estatuto do Idoso (BRASIL, 2003a) e pela Lei de n° 10.778, de 24 de novembro de 2003 (BRASIL, 2003b), que instituía a notificação compulsória de violência contra a mulher. Apesar de todas essas bases legais, o processo de implantação da notificação de casos de violências até 2004 ainda não estava em curso. Para Otaliba Morais, a experiência de Goiânia deu-lhe


"(...) mais condições de priorizar e, de uma forma mais rápida, implementar e buscar outras parcerias no âmbito do Ministério da Saúde, no âmbito de outros órgãos governamentais como a Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres, e a partir daí iniciar o processo de implantação da ficha de notificação no país".


A coordenadora da Área Técnica de Vigilância e Prevenção de Violências e Acidentes VPVA/MS destaca que a experiência de Goiânia teve muita influência no trabalho que desempenhou junto ao MS. Em Goiânia ela participou do processo de implantação da anticoncepção de emergência (GOIÂNIA, 1996a) e do atendimento especializado às crianças, adolescentes e mulheres vítimas de violência sexual e doméstica (GOIÂNIA, 1996b). No período de 2003 a 2004, participou também do processo de implantação da ficha de notificação dos casos de violência (GOIÂNIA, 2004b) e da criação do NPVPS (GOIÂNIA, 2004c) da SMS de Goiânia. No MS, coordenou o processo de construção, pactuação e implantação da Vigilância de Violências e Acidentes em Serviços Sentinela (VIVA) e da ficha nacional de notificação de casos de violência no Ministério da Saúde. Sobre essa influência ela ressalta:


"Apesar de ser sensível e motivada a trabalhar questões relacionadas às violências, estas experiências possibilitaram-me viver vários desafios, pensá-los e propor medidas de intervenção relacionadas às violências, como a anticoncepção de emergência e o aborto legal, a necessidade de implementar a rede de assistência às vítimas de violência e a notificação destes agravos, a formação de recursos humanos, e a estruturação de rede de proteção social. A partir de minhas vivências e experiências em Goiânia, acertos e desacertos, é que fui incumbida de conduzir este processo em nível nacional exercendo a função de coordenadora da Área Técnica de Vigilância e Prevenção de Violências e Acidentes do Ministério da Saúde".



O trabalho desenvolvido pelo DASIS/SVS/MS teve uma ampla articulação intra e intersetorial. A implantação da notificação nacional, como ocorreu em Goiânia, foi uma construção coletiva. O processo de discussão, análise, avaliação e pactuação da ficha de notificação compulsória de violência contra a mulher (e outras violências interpessoais) contou com uma ampla participação de técnicos e gestores de diferentes áreas do Ministério da Saúde (Áreas Técnicas da Saúde da Mulher, da Criança e Adolescente, do Idoso, do Trabalhador, do Portador de Deficiência, Mental, Bucal e dos programas de DST/AIDS). A articulação intersetorial envolveu ainda a Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres/Presidência da República. A Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial, também vinculada à Presidência da República, foi outra instância governamental que contribuiu com esse processo. Para Marta Silva,


"(...) [esse processo] foi um grande desafio, pois precisávamos superar a fragmentação e superposições entre várias áreas técnicas e chegar a um produto final que atendesse às especificidades das áreas, às demandas legais e às necessidades das pessoas vítimas de violência. Tínhamos que vencer a burocracia, as vaidades e guetos, e construir e pactuar uma ficha que atendesse às necessidades dos cidadãos, das pessoas. Este era o sentido. Construção coletiva é um processo demorado, permeado de conflitos, mas muito rico. No final, todos se reconhecem no produto. A ficha é reconhecida por todos e todos são responsáveis por ela".


Para a coordenadora da área técnica da VPVA/DASIS/SVS/MS, o processo de efetivação da ficha de notificação não foi fácil nem rápido. Ele demandou várias reuniões e oficinas. A construção democrática da Ficha de Notificação/Investigação de Violência Doméstica, Sexual e/ou Outras Violências exigiu por parte dos técnicos envolvidos a capacidade de “saber ouvir e balizar as diferenças entre vários pensamentos e conceitos envolvidos”. Em 27 de novembro de 2006, a Área Técnica da VPVA/ DASIS/SVS/MS apresenta a primeira análise preliminar dos registros da Ficha de Notificação/Investigação das Violências Doméstica, Sexual e Outras Violências. Dos 39 entes federados, 33 SMS, 5 SES e DF, que aderiam à proposta da vigilância contínua em serviços sentinelas, 29 conseguiram enviar os seus relatórios ao MS, até 24 de novembro de 2006. De agosto a setembro, 931 notificações foram registradas nos sistema de vigilância contínua do MS.

A ficha de notificação fornece, uma enorme riqueza de informações entre elas, dados sobre a incidência de casos de violência, de acordo com a faixa etária. Além desses dados, o levantamento da ficha de notificação registra os casos de violência, categorizando-os conforme o tipo de violência observado. A tabulação de dados realizados pela Notificação Nacional confirma a realidade observada em Goiânia, pelos conselhos tutelares e pelas unidades de saúde de urgência: a violência física ainda é a mais freqüente.

O resultado da pesquisa por amostragem realizada nas unidades de urgência e emergência foi apresentado em 11 de maio de 2007. Até essa data, 47.263 fichas de notificação foram registradas no sistema de vigilância de acidentes e violências do MS. Nas unidades de emergência pesquisaram-se os acidentes e os casos de violência interpessoais, e os dados indicam que os acidentes superam as violências interpessoais na faixa etária que vai de 0 a 9 anos. A partir dos dez anos até os 39 anos, predominam as violências interpessoais. Na faixa etária que vai dos 40 aos 60 anos, os acidentes voltam a ter maior freqüência nos registros das notificações.

Com relação ao tipo de ocorrência e o sexo da vítima, essa pesquisa identificou uma maior incidência no sexo masculino, tanto nos acidentes como nas violências. Dos 37.692 casos registrados na Ficha de Notificação de Acidentes e Violências em Unidades de Urgência e Emergência, até setembro de 2006, o sexo masculino representou 66% das vítimas de acidentes e violências e o sexo feminino 34%. Mas o mesmo resultado não aparece nos dados Ficha de Notificação/Investigação das Violências Doméstica, Sexual e Outras Violências – Vigilância Contínua. Dos 587 casos registrados entre agosto e setembro de 2006, o sexo feminino representou 64% das vítimas de violência e o sexo masculino 36%. Uma análise qualitativa dos dados apresentados nas duas fontes de registros poderá melhor explicitar como a violência e os acidentes se expressam entre os diferentes sexos.



Avanços e Desafios em Goiânia


A implementação da Ficha de Notificação/Investigação de Violência Doméstica, Sexual e/ou Outras Violências no Sistema Único de Saúde é uma importante conquista. Como todo instrumento de vigilância em saúde, ele deverá passar por adaptações e ajustes. Com certeza um bom tempo transcorrerá até que ele realmente seja incorporado na cultura institucional e na rotina dos serviços de saúde do país. Predomina ainda uma grande resistência por parte dos profissionais em relação à notificação compulsória. Alguns profissionais temem retaliações por parte dos agressores e seus familiares, ou não querem se comprometer com possíveis tramitações judiciais. Outros se preocupam com o rompimento do vínculo terapêutico ou com a exposição que as pessoas envolvidas possam sofrer. Mas a própria obrigatoriedade da notificação induz que essas discussões apareçam e se aprofundem, evitando assim a tradicional posição de naturalização e desresponsabilização com os casos de violência.

Em Goiânia, apesar de ter iniciado o processo de notificação em 2004, ainda existe a subnotificação dos casos de violência. Acredita-se que, com um trabalho permanente de acompanhamento e educação permanente das equipes, este grave problema possa ser minimizado. A notificação de violências em Goiânia está estendida a toda a rede de saúde, incluindo a atenção básica e o Programa de Saúde da Família. Assinale-se que, em 2006, as Unidades Regionais da Secretaria Municipal da Educação de Goiânia passaram a utilizar a Ficha de Notificação/Investigação de Violência Doméstica, Sexual e/ou Outras Violências. As primeiras notificações foram entregues ao NPVPS em 12 de dezembro de 2006. As notificações realizadas na rede de educação municipal seguem o mesmo fluxo das notificações da saúde. Até o final do primeiro semestre de 2007, os Programas Sentinelas da área da assistência social estarão utilizando o mesmo instrumento.


A intenção, ao integrar a área da assistência social e da educação no processo de notificação, é ampliar o trabalho de vigilância, permitindo um registro mais fidedigno dos casos de violência ocorridos em Goiânia. Essa extensão da notificação a essas áreas visa também à identificação, em fases mais precoces, dos casos de violência. Essa extensão tem como finalidade última qualificar assistência as pessoas que vivem situações de violências.

Salienta-se que, no caso de violências contra crianças e adolescentes, é sempre enviada uma cópia da ficha de notificação ao conselho tutelar. No caso das violências contra o idoso, os DS enviam um relatório para o Ministério Público de Goiás. O NPVPS/SMS de Goiânia, em conjunto com a Rede de Atenção de Goiânia, tem mantido uma articulação permanente junto ao Ministério Público, ao Fórum de Justiça de Goiás e à Secretaria Estadual de Segurança Pública de Goiás. Essas articulações têm o objetivo de se garantir a atenção integral e humanizada, os direitos e a proteção social das pessoas que sofrem violências. Uma conquista recente é a implantação da sala de inquirição especial para os julgamentos que envolvem violências contra crianças, mulheres e crianças, que aconteceu em 25 de janeiro de 2007.


Notas

  1. Todas as vezes que fizermos referência à Rede de Atenção a Mulheres, Crianças e Adolescentes em Situação de Violência de Goiânia, utilizaremos apenas a expressão Rede de Atenção de Goiânia.
  2. A capacitação foi dirigida aos profissionais da área de saúde, de educação e de assistência social do município de Goiânia. Os encontros ocorreram em cinco regiões diferentes da cidade, e foram planejados e organizados pelo que se denomina Grupo de Trabalho, que é responsável pela educação permanente da Rede de Atenção de Goiânia. A execução e o financiamento ficaram a cargo do Núcleo de Prevenção das Violências e Promoção da Saúde (NPVPS) da Secretaria Municipal da Saúde de Goiânia e do projeto “Ações de enfrentamento da violência sexual infanto-juvenil em Goiânia e região metropolitana” (UCG/SEDH.PR).
  3. A designação Ficha de Notificação/Investigação de Violência Doméstica, Sexual e/ou Outras Violências foi criada pelo Ministério da Saúde, em 2006, a partir de pactuações internas e externas, e constitui um dos instrumentos de notificação da Vigilância de Violências (VIVA).
  4. Para maior aprofundamento sobre o histórico da fundação da Rede de Atenção de Goiânia, ver o texto de Luiz do Nascimento Carvalho, Iraídes Campos da Luz e Noemi Assim, que também compõe esta obra.
  5. O Fórum Goiano pelo Fim da Violência e Exploração Sexual Infanto-Juvenil e o Fórum Goiano de Mulheres são os dois segmentos sociais que coordenam a Rede de Atenção de Goiânia.
  6. No relatório do Planejamento Estratégico Situacional (PES) de 2001, a idéia de uma ficha de notificação dos casos de violência não estava sedimentada. Essa é a razão por que, na época, os participantes propuseram uma ficha denominada Formulário Único de Acolhimento dos Casos de Violência. Todos os registros desse formulário deveriam ser condensados em uma central de dados informatizada.
  7. No texto, esse termo foi substituído por fichas de notificação, pois, na compreensão da autora, ele contempla melhor o sentido do que foi proposto pelos participantes do PES de 2001.
  8. Essa ficha é citada no depoimento de Norma Cardoso, mas não foi encontrada nenhum exemplar dela, e nem registro que informasse a sua origem.
  9. Em todos os documentos impressos da SMS de Goiânia, a notificação de casos de violência é denominada Ficha Multidisciplinar de Notificação de Suspeita ou Confirmação de Violência. Vale ressaltar que na portaria SMS nº 152, de 5 de maio de 2004, que regulamenta a notificação em Goiânia, não aparece o termo “multidisciplinar”.

REFERÊNCIAS

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______. Ministério da Saúde. Política Nacional de Redução da Morbimortalidade por Acidentes e Violências. Portaria MS/GM n.º 737 de 16 de maio de 2001. Diário Oficial da União, n. 96, Seção 1E de 18 de maio de 2001. Brasília: Ministério da Saúde, 2001. (Série E. Legislação de Saúde, n.8).

______. Ministério da Saúde. Portaria nº 1.968/GM, que regulamenta a Notificação de Maus-Tratos contra Crianças e Adolescentes no Sistema Único de Saúde. Brasília: Ministério da Saúde, 2001b.

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______. Ministério da Saúde. Secretaria da Atenção à Saúde. Violência faz mal à saúde / [Cláudia Araújo de Lima et al. (Coord.) ]. Brasília: Ministério da Saúde, 2005.

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GOIÂNIA. Secretaria Municipal da Saúde de Goiânia. Coordenação de Rede Básica. Núcleo de Assistência à Saúde da Mulher, Criança e Adolescente. Memorando nº 75 de 26 de setembro de 1996, que comunica a implantação da Anticoncepção de Emergência e dá outras providências. Goiânia: Secretaria Municipal da Saúde, 1996a.

______. Secretaria Municipal da Saúde de Goiânia. Coordenação de Rede Básica. Núcleo de Assistência Integral à Saúde da Mulher, Criança e Adolescente. Memorando nº 791 de 3 de dezembro de 1996, que comunica a implantação do serviço de acompanhamento psicológico a mulheres, crianças e adolescentes vítimas de violência doméstica e abuso sexual. Goiânia: Secretaria Municipal da Saúde, 1996b.

______. Secretaria Municipal da Saúde de Goiânia. Coordenação de Rede Básica. Divisão de Atenção à Saúde da Mulher, Criança e Adolescente. Projeto da Rede de Atenção a Mulheres, Crianças e Adolescentes em Situação de Violência. Goiânia: Secretaria Municipal da Saúde, 2000.

______. Secretaria Municipal da Saúde de Goiânia. Coordenação de Rede Básica. Divisão de Atenção à Saúde da Mulher, Criança e Adolescente. Apresentação do Fluxo da Rede de Atenção a Mulheres, Crianças e Adolescente em Situação de Violência de Goiânia. Goiânia: Secretaria Municipal da Saúde, 2004a.

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______. Secretaria Municipal da Saúde de Goiânia. Portaria n° 698 de 24 de novembro de 2004, que institui o Núcleo de Prevenção das Violências e Causas Externas e Promoção da Saúde. Goiânia: Secretaria Municipal da Saúde, 2004c.


Capítulo publicado no livro (Re) Descobrindo faces da violência sexual contra crianças e adolescentes / Org. [por] Maria Luiza Moura Oliveira e Sônia M. Gomes e Sousa - Brasília: Secretaria Especial dos Direitos Humanos, Goiânia: Cânone Editorial, 2007.