Maria Aparecida Alves da Silva
No Brasil e no mundo ocidental, os fatores preponderantes de mortes de crianças e de jovens não são mais as enfermidades de origens biomédicas e sim o estilo de vida. J. B. da Silva Júnior e H. T. Ocampo, na apresentação da publicação Impacto da violência na saúde do brasileiro, enfatizam que a maior ameaça à vida das crianças e dos jovens no Brasil não são as doenças, mas sim a violência (SILVA JR.; OCAMPO, 2005). Em outro importante documento, a Organização Pan-Americana da Saúde (Opas) ressalta que “a violência, pelo número de vítimas e pela magnitude de sequelas orgânicas e emocionais que produz, adquiriu um caráter endêmico e se converteu num problema de saúde pública em muitos paises” (ORGANIZACIÓN..., 1994, p. 5).
Dentre as diversas formas de violências sofridas pelas crianças e jovens no Brasil, a violência física é uma das mais frequentes. Na morbidade medida pelas internações hospitalares, verifica-se elevada ocorrência de traumatismo craniano em crianças. No Brasil, em 1998, foram internadas por essa causa 16.376 crianças menores de dez anos, com predomínio do sexo masculino. Desse total, 56,8% eram menores de cinco anos, sendo representativo o número de internações de menores de um ano (SOUZA; JORGE, 2005). Nas urgências dos hospitais brasileiros, 10% das crianças que se apresentam com menos de cinco anos são vítimas de violência física (AZEVEDO; GUERRA, 1995).
O relatório da Conferência Nacional de Bispos do Brasil (CONFERÊNCIA..., 1999) estima que 18 mil crianças sejam espancadas por dia no Brasil, e ao ano 6.570.000. Esse número é extraordinariamente cruel. Os resultados do inquérito de Vigilância de Violências e Acidentes (Viva) do Ministério da Saúde, realizado em diversas unidades de urgência e emergência do país no ano de 2007, indicam que a violência preponderante entre crianças, adolescentes, mulheres e idosos é a do tipo física (BRASIL, 2008). A violência sofrida por crianças, mulheres e idosos na maioria dos casos tem como local de ocorrência a residência, seja ela da vítima ou do agressor. Apenas entre os adolescentes as violências ocorrem mais na via pública.
Os resultados encontrados pela CNBB e pelo inquérito Viva confirmam as estatísticas registradas na maioria dos conselhos tutelares e delegacias de proteção de crianças e adolescentes espalhados pelo País. Nesses serviços, a maioria das denúncias de violência contra crianças e adolescentes refere-se à violência intrafamiliar do tipo física, quase sempre conjugada à negligência e/ou à violência psicológica. A maioria dos casos acontece dentro de casa e tem como principal agressor os próprios pais biológicos, haja vista que, a violência física, seja moderada ou imoderada, permanece ainda como um importante instrumento de disciplinamento de crianças na esfera das relações familiares.
Vários campos do conhecimento alertam sobre os riscos que a violência física praticada contra crianças pode acarretar. Os dados da morbimortalidade indicam os riscos de sequelas físicas ou de morte. As pesquisas na área da psicologia alertam para os danos emocionais ou comportamentais. Algumas pesquisas nacionais e internacionais (WEBER, 2001; ASSIS et al., 2004; STRAUS, 1991, VYGOTISKI, 2004) apontam os riscos ou disfunções que a prática de educar os filhos pela violência física pode desencadear no desenvolvimento da criança.
As pesquisas de Weber (2001), Weber e Viezzer (2004) e Vygotiski (2004) indicam que:
- as punições físicas oferecem um modelo inadequado de os adultos lidarem com situações de conflitos, que é o uso da força, da violência;
- a restrição imediata de um comportamento inadequado pelo uso da dor impede pais e filhos de conhecerem as origens das dificuldades e suas motivações, em razão do que fica mais difícil a sua real elaboração e superação;
- a violência física facilita o surgimento de desvio no comportamento, como esconder ou dissimular o comportamento inadequado por medo da punição física; o comportamento desejado só acontece na presença do adulto que pune, pois o controle dele se dá por coação externa e não pela aceitação íntima da criança ou adolescente;
- aparecem dificuldades na aprendizagem e na internalização das regras e dos valores de certo e errado, pois a violência física vem associada a sentimentos e sensações negativas;
- aumentam-se as chances de aparecerem dificuldades na aceitação da figura de autoridade.
Os danos, as lesões, os traumas e as mortes decorrentes da violência física contra as crianças têm um elevado custo social, causam prejuízos econômicos, sobrecarregam o sistema de saúde, aumentando os gastos com emergência, assistência e reabilitação (BRASIL, 2005). No entanto, o maior custo é o humano, pois a violência física intrafamiliar tem destruído vidas, ferido corpos e mentes de muitas crianças. Ela provoca danos mentais e emocionais incalculáveis nas vítimas e em seus familiares. Apesar de serem estarrecedores, os números apresentados anteriormente revelam apenas a ponta do iceberg, ou seja, as violências que foram denunciadas ou notificadas. A violência física que atinge um número maior de crianças nem sempre é reconhecida como tal, pois ela se encontra naturalizada como um método educativo punitivo-disciplinar. Essa forma de violência comparece rotineira e metodicamente na vida de muitas crianças no Brasil.
A prática de bater para educar as crianças vem sendo superada paulatinamente na esfera da educação escolar. Na atualidade, muitos avanços conceituais e metodológicos foram conquistados pela escola, reduzindo a força da visão que apostava na necessidade do uso da punição física para atingir uma real aprendizagem. A escola, diferentemente da família, consolida-se como uma instituição mais aberta e plural, em que as brechas são maiores para mudança em relação aos modelos de educar crianças. No entanto, a família ainda permanece como uma detentora legítima do uso da violência física (ARIÈS, 1978).
De acordo com Assis e Deslandes (2005), o banimento da violência física na mediação da aprendizagem escolar de crianças ocidentais fez um importante contraponto à sua aceitação em outros processos educativos. Elas afirmam que
a “pedagogia da punição corporal” se tornou, definitivamente, prática ilegítima e arbitrária se exercida por professores, ou profissionais nos últimos 80 anos, indicando um avanço na consolidação dos direitos humanos. Contudo continua banalizada quando é exercida como forma de comunicação entre estudantes: em quase todas as partes do mundo (ASSIS; DESLANDES, 2005, p.49).
Autores como Redin (1996 apud ASSIS; DESLANDES, 2005), Adorno (1995) e Freire (2004), conforme uma proposta de mudança cultural, buscam por meio de suas propostas educativas desmistificar a naturalização do uso da violência como método de socialização das crianças. Na contramão do senso comum que naturaliza a prática da violência como instrumento pedagógico disciplinar, Redin (1996 apud ASSIS; DESLANDES, 2005) entende que a educação básica só será transformadora se a escola eleger como missão e identidade ser uma antítese da violência. Para o autor, a educação
deverá estabelecer e garantir relações objetivas e subjetivas que instalem nas crianças e nas instituições (educativas e/ou assistenciais) o sentimento inquestionável e irredutível de dignidade, auto-estima, de consideração, de respeito (...). Serão expurgados desta escola: as ameaças, as pressões, as provas humilhantes, os castigos. Nenhum homem humilhado será um cidadão pleno (REDIN, 1996, p 98).
Adorno (1995), em Educação e emancipação, compreende que a experiência formativa caracteriza-se pela difícil mediação entre o condicionamento social - o momento de adaptação - e o sentido autônomo da subjetividade - momento de resistência. Para o autor, uma das principais tarefas da educação é resistir à barbárie, pois esta é justamente o contrário da formação cultural. Ainda que o alcance e as possibilidades concretas da escola sejam por demais restritas, a desbarbarização do homem deve ser o seu principal objetivo. O autor, ao opor a educação à barbárie, expressa o desejo de que, “por meio do sistema educacional as pessoas comecem a ser inteiramente tomadas pela aversão à violência física” (ADORNO, 1995, p. 165). Em sua argumentação, evidencia que o elogiado objetivo de ser duro, proposto por algumas correntes da educação,
significa indiferença contra a dor em geral. No que, inclusive, nem se diferencia tanto a dor do outro e a dor de si próprio. Quem é severo consigo mesmo adquire o direito de também ser com os outros, vingando-se da dor cujas manifestações precisou ocultar e reprimir. Tanto é necessário tornar consciente esse mecanismo quanto se impõe a promoção de uma educação que não premia a dor e a capacidade de suportá-la, como acontecia antigamente (ADORNO, 1995, p. 116-117).
P. Freire (2004) afirma, na sua obra Pedagogia da autonomia, que educação é uma forma de intervenção no mundo. Nesse sentido, ele considera equivocada a educação que não reconhece as injustiças e não expressa a sua raiva contra ela. O ato de protestar contra a deslealdade, contra o desamor, contra a exploração e a violência assume, em sua concepção, um papel altamente formador. Crítico da educação que incentiva a resignação dos que estão em sofrimento, não soma a sua voz à dos que, falando em paz, solicitam aos oprimidos, aos esfarrapados do mundo, aos sofredores a sua resignação. Para esse autor, a humildade não deve ser construída com base na submissão à arrogância e ao destempero de quem desrespeita o outro. O educador não sai de seu papel, tampouco ocupa o lugar de terapeuta ou assistente social, quando reconhece o sofrimento e a inquietação de seus alunos.
De acordo com Geraldi, Messias e Guerra (1998), os professores ao fazerem escolhas e agirem em seu ofício, demonstram as influências e conhecimentos adquiridos na sua vida familiar e social. Ao entrar na sala de aula, o educador leva uma bagagem de suposições, crenças e valores implícitos e não--articulados sobre o contexto social da escolarização. Esse conhecimento social, que nem sempre é levado em consideração na formação de, com certeza, influencia o papel de educador.
Os professores, todos os dias, fazem escolhas que afetam a vida e as oportunidades de muitas crianças. Essas pequenas escolhas, que podem se manifestar no ato de ouvir, de dar sentido e valor ao que as crianças vivem, ou de se calar ante as violências sofridas por elas, têm implicações diretas no que as crianças aprendem sobre os conceitos de igualdade e justiça. Tais escolhas, que operam na cotidianidade da relação professor-aluno, baseiam-se no que o professor tem internalizado em sua formação pessoal e subjetiva, bem como em sua formação acadêmica e profissional.
Para conhecer qual o conteúdo da bagagem - conceitos, sentimentos e práticas - que os professores carregavam sobre a realidade de violência física vivida por seus alunos e a repercussão dela na profissionalização e prática docente foi realizada uma pesquisa com 24 professores em duas escolas públicas do ensino fundamental da cidade de Goiânia. O objetivo da pesquisa foi identificar os saberes a que o professor recorria para compreender e lidar com situações de violência física sofrida por seus alunos no ambiente intrafamiliar. Partindo do entendimento de que os saberes docentes do professor não se constroem apenas por intermédio do processo formal de graduação (GERALDI; MESSIAS; GUERRA, 1998), investigaram-se também as influências do contexto sócio-cultural que interagem na formação do professor.
A violência física contra crianças na educação escolar e familiar
Os resultados obtidos na pesquisa de campo indicaram que existe por parte de todos os professores participantes uma rejeição ao uso de toda e qualquer forma de violência física na educação da criança no espaço público da escola. De acordo com os entrevistados, na educação escolar, entre adultos e crianças, devem predominar o afeto, o diálogo, a negociação e a tolerância. A educação escolar precisa respeitar os limites da criança e promover o desenvolvimento, a autonomia e emancipação dos educandos.
No entanto, percebeu-se pelas argumentações dos sujeitos entrevistados que nem sempre o que é valorizado na educação da criança no espaço escolar serve à educação da criança na família. A fala de uma das professoras pesquisadas ilustra essa realidade. Em uma entrevista ela informa, que, como coordenadora, sempre recomenda aos seus colegas professores que mantenham a calma e o controle nos momentos de conflito com os alunos. De acordo com tal professora “o professor deve manter a serenidade, ter mais estrutura [...] e não se colocar no mesmo nível da criança”. Imediatamente após fazer toda essa explanação, faz a seguinte reflexão: “enquanto professora, às vezes, eu faço melhor com as crianças da escola do que com os meus próprios filhos [...] meu sonho era poder educar os meus filhos sem bater, mas eu não consigo”.
A rejeição da violência física na educação dos alunos nem sempre se estende aos filhos. Os saberes que os professores construíram sobre a maneira de educar crianças na escola não se generalizam para a educação de seus próprios filhos. Os professores apresentam uma proposta de educação e de autoridade que não serve ao mundo da vida privada familiar. A reflexão feita pela professora citada acima, explicita uma contradição, pois aceita a prática da violência física na relação educacional entre pais e filhos e não mais na relação entre professor e aluno. Uma explicação possível para essa contradição é que por ser mais claramente explicitada a proibição de bater nos alunos, os professores não admitem que sentem a vontade de praticar esses atos de violência e preferem, como dizem Groppa e Sayão (2004), delegar essa punição aos pais e cobrar deles para que o façam.
Na educação de crianças, no espaço privado da família, certas formas de violência física são toleradas e até cobradas. Nas questões que tratam da autoridade na família, aparece a avaliação negativa em relação à omissão dos pais ante os maus comportamentos dos filhos. De forma implícita ou explicita, alguns professores desaprovam os pais que não punem os filhos quando eles adotam um comportamento considerado inadequado. A frase dita por um professor ilustra essa desaprovação: “Autoridade na família é muito importante, cada vez mais os pais estão perdendo essa autoridade. Quando chamamos os pais para contar alguma coisa que ele [o aluno] faz, a primeira coisa que eles fazem é entregar os filhos em nossas mãos. Eles falam que não sabem o que fazer com os filhos”.
Ao manifestar a aceitação dos métodos violentos na educação da criança no espaço privado da família, os professores expressam saberes que se distanciam dos ideais emancipatórios. A educação familiar que tolera a violência física contra a criança tem como princípio a idéia de controle, coação e sujeição da criança. A idéia de uma autoridade forte, que mantém a ordem, a disciplina e o controle por meios violentos, não é defendida pelos sujeitos pesquisados na esfera da vida pública, como é o caso da educação escolar.
No entanto, esse tipo de autoridade é legitimado no espaço privado da família. O pai ou mãe que não exerce o poder punitivo corre o risco de serem avaliados como uma pessoa omissa ou, segundo ressalta uma professora, podem ser considerados “até como fraquinhos”. Os resultados encontrados na pesquisa evidenciam esta contradição ao sinalizar que os avanços conceituais e práticos construídos ao longo da história da educação ainda não adentraram a esfera da vida privada. O diálogo, o respeito às fases de desenvolvimento, os limites e os direitos da criança não constituem uma realidade na educação familiar de muitas crianças no Brasil.
Tanto professores como alunos vivenciam a contradição permanente sobre concepções de educar. Na escola, a educação concebida pelos professores pesquisados tem a finalidade de promover a crítica, a consciência e autonomia da criança, por intermédio do respeito, do diálogo e do afeto. Na família, a educação de crianças tem outros fins, tais como o controle e sujeição da criança. Na família, a educação das crianças sustenta-se em valores e práticas conservadores. A criança como sujeito de direitos é um valor que sobrevive apenas da porta para fora, já que depois da soleira da casa, as coisas são diferentes, pois o passado está vivo!
Os professores diante da violência física intrafamiliar contra crianças
Em concordância com o pensamento de Contreras (2005), é fundamental que o professor promova a desnaturalização dos acontecimentos que cercam a realidade dos alunos. Com base nessa visão, entende-se que o docente, ao discutir a situação de violência física vivida por seus alunos, deva promover com eles e seus pais uma reflexão crítica em relação à prática educativa que tem como instrumento a violência física. É importante que essa prática seja contextualizada para que não se responsabilizem as crianças e seus comportamentos pela ocorrência das violências.
Enfrentar uma situação de violência intrafamiliar contra criança não é uma tarefa fácil para nenhum profissional, seja ele um trabalhador da área da saúde, da assistência social ou da educação. Essa situação desperta muitas dúvidas e temores, pois envolve crenças e valores muito arraigados na cultura. Um receio presente em muitas falas dos sujeitos entrevistados é o de piorar a situação da criança se intervir ou denunciar a violência identificada. Mas, para não enfrentarem o desconforto e o sofrimento que as situações de violência acarretam, alguns profissionais negam essa realidade. Essa negação não foi evidenciada nos resultados da pesquisa, pelo menos nos casos de violência física imoderada.
Ante a identificação de uma situação de violência física imoderada, os professores pesquisados não demonstraram um distanciamento emocional do problema, ou seja, uma naturalização da violência. Muito pelo contrário, eles expressaram um sofrimento e uma preocupação intensa com a situação vivida pelas crianças. Relataram que constantemente convivem com sentimentos de impotência e frustração, pois ainda que levem o caso para os serviços de proteção, tais como o Conselho Tutelar, Delegacia ou Ministério Público, a situação da criança pouco se altera. Sentem-se impotentes, sozinhos, não têm apoio sindical ou das secretarias de educação, ou dos outros pais. Na verdade não há nenhuma forma de organização social que as apóie. Essa mesma reação não acontece em relação à violência física considerada moderada. Nesse caso, a avaliação da gravidade da violência física com base em sua intensidade e sua aceitação está incorporada ao senso comum brasileiro, uns tapinhas, um puxão de orelhas, não fazem mal às crianças. Essa forma de pensar está presente mesmo em documentos oficiais como é demonstrado no Código Penal (BRASIL, 1940) e no próprio Estatuto da Criança e do Adolescente (BRASIL, 2004), que só prevêem penalidades para as punições imoderadas.
Como já se referiu anteriormente, a tendência da maioria dos pesquisados, quando identificam sinais de violência física em seus alunos, é tentar lidar com a situação dentro da própria escola, evitando fazer a denúncia ao Conselho Tutelar. O primeiro motivo apontado pelos professores para não se formalizar uma denúncia é o receio de que as crianças venham a sofrer retaliações do familiar denunciado. Outro motivo é a questão sócio-econômica das famílias de alunos das escolas públicas. Os educadores avaliam que esta é tão grave que a questão da criança ser maltratada passam a ser secundários. Na entrevista individual, uma professora relatou que, em alguns casos, pondera se a violência que a criança sofre é mais grave do que a condição de miserabilidade da família, afirmando que “tem famílias onde falta tudo, que são desprovidas de tudo”. Para ela uma denúncia só agravaria mais a situação. Ela parece temer que uma intervenção do Conselho Tutelar agrave ainda mais a situação de penúria dessas famílias. Reconhece um sofrimento familiar e que as instituições não vão resolver a realidade socioeconômica vivenciada e que, portanto, não haverá mudanças positivas para as crianças.
Um terceiro motivo que contribui para que não se denunciem os casos de violência é o medo das conseqüências que essa denúncia pode trazer para a escola ou para o próprio denunciante. Alguns familiares dos estudantes, segundo o depoimento de uma professora, parecem ser ligados a grupos violentos, em razão do que os professores temem por sua própria integridade física, evitando denunciá-los. Um último motivo que poderia ser colocado refere-se à falta de confiança, sentida pelos educadores, nos serviços de proteção oferecidos no município de Goiânia. Alguns professores relatam que os casos de violências encaminhados ao Conselho Tutelar não alcançaram resultados favoráveis à situação vivida pelas crianças. Não apareceu como motivo para não se fazer denúncia ao Conselho Tutelar a preocupação com a privacidade da família, ou o respeito ao pátrio poder.
Em razão desses medos e desconfianças, os professores investem em uma aproximação com a família, a fim de orientá-la. Uma questão a ser aprofundada posteriormente é que, no entanto, esses receios e desconfianças dos docentes não inibem a denúncia ao Conselho Tutelar, quando os casos identificados envolvem violência sexual. Esses casos são considerados os mais graves. Parece que para tais situações as contradições que apontamos anteriormente entre o vivenciado na escola e socialmente não se fazem presentes. O ataque ou o abuso sexual é sempre violência, não há dúvidas. Uma professora expressa esse entendimento dizendo: “a violência física ocorre aqui na escola, é uma situação muito difícil, mas eu fico indignada é quando ocorre a violência sexual”. Nos casos de violência sexual, considera-se a natureza, a qualidade do ato sexual e não sua quantidade ou freqüência. Como essa violência é considerada mais grave pelos professores, ela tende a ser denunciada ao Conselho Tutelar.
Com a violência física, não é a natureza, a qualidade do ato que determina o reconhecimento da violência, mas sim a sua quantidade. O ato de coagir, provocar dor ou sofrimento por meio de agressões físicas em uma criança só é reconhecido pelos professores como uma violência, se houver um excesso. Em virtude dessa compreensão, só as situações de violência física imoderada recebem atenção e preocupação dos professores. Mas nem sempre essas situações são encaminhadas ao Conselho Tutelar. Portanto pode-se interpretar que o entendimento sobre o fenômeno da violência é importante, pois altera as formas de o professor agir (CHARLOT, 2005).
Compreendem-se os receios e descréditos dos professores sobre as consequências de suas possíveis denúncias. A atitude adotada por eles de não investir apenas em medidas punitivas em relação aos pais agressores representa um avanço, pois pode ser interpretada como indicação de uma proposta educativa também para os familiares dos alunos. Um processo educativo que dê qualidade às relações entre pais e filhos é fundamental. No entanto, a opção de não denunciar os casos de violência pode implicar riscos de vida para a criança, por não intervir diretamente no padrão familiar violento.
Outro aspecto crítico refere-se à culpabilização da criança pela ocorrência da violência. Esta pesquisa pode sinalizar que, implicitamente, para certos professores o mau comportamento das crianças justificava a violência sofrida por elas. Em uma das escolas pesquisadas, quando se relatou um espancamento sofrido por uma aluna, algumas educadoras tentaram justificar a partir das qualidades negativas da criança, como se por tais atributos a fizessem merecedora da violência sofrida.
Alguns relatos mostraram que há uma tentativa de diálogo com os estudantes para que se controlem e evitem comportamentos que provoquem a agressão de seus pais. Orientar crianças sobre os seus comportamentos e os possíveis riscos que eles podem acarretar, constitui uma conduta necessária, desde que não a responsabilizem, com seus comportamentos, pela violência que os pais cometem contra elas. A orientação não deve ter como princípio a idéia de resignação e conformidade: “A vida é mesmo assim, seu pai estava nervoso, você tem que entender, até Cristo apanhou”. Expressões como essas são muito usadas nos seus discursos. Elas tentam cumprir um papel de consolo, mas, de forma prejudicial, terminam por reproduzir o discurso que banaliza e naturaliza a violência. Paulo Freire (2004) critica o incentivo à resignação dos que estão em sofrimento. A construção de uma cultura de paz nas relações familiares não deve se sustentar na submissão ou na obediência cega dos filhos, mas sim no entendimento de que pais e filhos são sujeitos de direito. Nesse sentido, os conflitos e impasses têm que ser resolvidos por intermédio do diálogo e do entendimento recíproco e não pela violência, seja moderada ou imoderada.
A violência física intrafamiliar contra crianças e a formação de professores
A atuação do docente não deveria consistir em resolver problemas como se fossem nós cegos que após serem desatados desapareceriam (SACRISTÁN, 1995). Na prática docente, só em raríssimas situações os casos de conflitos resolvem-se de forma pontual. No cotidiano, o professor vê-se compelido a tomar decisões sobre questões complexas e que não têm solução a curto prazo. As situações de violência física contra crianças fazem parte dessas questões. De acordo com os relatos dos pesquisados, a formação acadêmica e mesmo a continuada pouco têm oferecido para auxiliar os professores a lidar com os dilemas que as situações de violências físicas implicam.
De acordo com Barth (1993), é determinante na construção de um conhecimento o número de encontros de um indivíduo com determinado saber, assim como a qualidade da ajuda que teve para interpretar esse saber. Pelo que apontam os resultados da pesquisa, a formação acadêmica não tem possibilitado a seus discentes acesso a saberes sobre o fenômeno da violência física intrafamiliar. A formação continuada, de forma esporádica e pontual, tem abordado o tema da violência, mas sempre com enfoque na sexualidade ou nas drogas, ou nas ações violentas de alunos. O contato dos professores com o tema da violência física contra alunos é muito restrito e a ajuda que eles recebem para entender esse fenômeno, em geral, não decorre da formação docente, mas das trocas com os próprios pares.
Os professores pesquisados relatam não ter recebido nenhuma informação, seja na formação inicial ou na continuada, sobre o tema da violência física intrafamiliar. Os saberes sobre esse tema foram construídos no contexto sócio-cultural em que vivem. Tais saberes se estabelecem por meio da própria experiência, das discussões entre colegas de trabalhos, amigos ou familiares. As falas de duas professoras sinalizam como a formação dos docentes está distante da realidade da violência física vivenciada pelos alunos e identificada na sala de aula. Uma diz: “não recebi nenhuma informação da formação acadêmica, eu acho que eles [os professores da faculdade] próprios não têm conhecimento dos tipos de violência que a gente enfrenta na escola”; e a outra diz: “Foi Deus que me deu sabedoria. Na hora, no corpo a corpo é que decido como agir. Tento agir como mãe ao lidar com as situações de violência”. Os dois depoimentos revelam como os professores estão desprovidos de conhecimentos que os auxiliem a lidar com tais situações. Ante a ausência de uma formação adequada é até compreensível o apelo que uma das professoras pesquisadas faz à intervenção divina.
Os resultados encontrados na pesquisa indicam que deixar que a prática ensine aos professores a lidar com questões, como a da violência física intrafamiliar contra crianças não tem resultado em avanços na garantia e proteção dos direitos da criança. Pela dimensão e complexidade do fenômeno da violência física contra crianças, entende-se ser necessário um suporte teórico para que o professor possa ultrapassar suas dúvidas, conflitos, contradições, e construir um contraponto significativo sobre um saber sobre e um saber como atuar em relação à violência vivida por seus alunos (SACRISTÁN, 1999).
Para Charlot (2005), a teoria é fundamental na formação do professor, mas precisa ser contextualizada na prática docente. Assim, cabe às instituições formadoras envolverem-se com os desafios que a prática do professor produz. A realidade da violência física na vida das crianças impõe mais um desafio à formação do docente. Ainda que seja importante a troca de conhecimentos e experiências entres os pares, faz-se necessário que eles se apropriem de conhecimentos que permitam ampliar o entendimento da violência física para além do senso comum e de sua realidade imediata. As informações repassadas nas entrevistas dos professores indicam que a prática docente em si não tem permitido que eles identifiquem as contradições existentes entre suas concepções de educação, de autoridade e de criança e a prática educacional que tem como método a punição e o disciplinamento das crianças por meio da violência física.
Como afirma Sacristán (1995), o suporte do conhecimento à prática docente ainda é muito restrito, o que tem se configurado em uma das causas que levam muitos professores a atuar sem se questionar sobre suas convicções, e em conformidade com mecanismos adquiridos culturalmente por meio da socialização, mais do que com o suporte do saber específico, de tipo pedagógico. Os resultados encontrados pela pesquisa empírica realizada nas escolas de Goiânia corroboram a hipótese do autor. Em relação à realidade da violência física vivida por seus alunos, os professores pesquisados ressaltaram a influência da socialização informal sobre os seus saberes.
Concorda-se com Souza (2006) que considera primordial que a sala de aula constitua-se como espaço de negociações e de produção de novos sentidos e significados, dos diferentes conceitos e valores trazidos das experiências cotidianas dos discentes e docentes. Para a autora, o processo de reelaboração dos significados produz uma reordenação das atividades mentais dos alunos e professores participantes na atividade. As experiências intersubjetivas implicadas em todo esse processo geram novos sentidos e poderão substituir os que compunham o conhecimento experiencial. No entanto, o professor, como dirigente desse fórum, tem que ter ele mesmo vivenciado processo semelhante de construção de novos sentidos e valores em sua formação. Por essa razão, é importante que esse aspecto faça parte permanente das metodologias praticadas em sua formação, seja continuada ou inicial.
Os pesquisados possuem raiz cultural comum. Nasceram, foram criados e vivem em um mesmo contexto cultural que tradicionalmente aceita a prática de bater nos filhos para educá-los. Embora se aceite que os processos de aprendizagens sociais influenciam na aceitação do uso da violência física na educação dos filhos, é importante considerar que esses processos não determinam os valores e as práticas de todos os sujeitos, pois existe uma relação dialética entre o indivíduo e a sociedade (VYGOTISKI, 2007). Os valores sobre a violência física, expressos por uma professora que divergiu dos demais entrevistados, negando o uso da violência como instrumento educativo, indicam que não existe um determinismo cultural. Existem sujeitos que constroem valores dissonantes, que destoam do já estabelecido e que nos mostram as possibilidades de mudanças, pois operam em outro sentido, o de desnaturalizar a violência física.
Cabe ressaltar que a idade não fez diferença na aceitação ou não dos métodos educativos violentos. A professora que expressou de forma mais veemente a sua aprovação à punição física tinha 23 anos, é a mais jovem dos sujeitos pesquisados. E a única professora que demonstrou desaprovar a prática de bater nos filhos para educá-los tinha mais de quarenta anos. Os resultados encontrados na pesquisa corroboram a argumentação de Barth (1993), que afirma que a idade não determina concepções de uma pessoa, mas sim o número de encontros que ela teve com determinado saber, assim como a qualidade de ajuda que teve para interpretar esse saber. Para essa autora o “saber é o sentido que damos à realidade observada e sentida num dado momento” (BARTH apud FIORENTINI et al., 1998, p. 322).
A investigação realizada não trabalhou com a idéia de resposta certa ou errada. Ante os resultados encontrados, não se adotou uma atitude de julgamento ou de depreciação dos educadores. A forma como estes entendem ou agem, em relação à violência física intrafamiliar identificada em seus alunos, não é incongruente com as crenças e práticas do contexto social em que eles estão inseridos. O fato de não conseguirem ainda compreender a complexidade do fenômeno da violência física intrafamiliar contra a criança, com suas funções e riscos, é um desafio a ser enfrentado por todos os envolvidos no processo educacional, uma chamada de atenção para que se priorize uma formação aberta a estas questões.
Encontrou-se no campo de pesquisas professores com muitas qualidades pedagógicas e didáticas, e também com dúvidas e dificuldades na prática docente. Nas entrevistas individuais, todas as professoras da uma das escolas falavam com orgulho de sua profissão, expressando um vínculo positivo com a escola. Essas professoras demonstraram um grande envolvimento afetivo com seu trabalho e seus alunos, sem indicar desânimo ou cansaço aparente nas atividades cotidianas. Algumas delas beiravam os sessenta anos, no entanto, participavam de brincadeiras e das atividades comemorativas com entusiasmo e proximidade dos alunos. Essas senhoras fantasiavam-se e se integravam às brincadeiras desenvolvidas na escola com uma alegria quase juvenil. Ao falar da relação professor e aluno, elas sempre ressaltavam a importância da afetividade. Em suas falas, apesar de aparecerem sutis críticas ao autoritarismo da direção, registraram que sentem prazer no trabalho que executam. Algumas moravam no próprio bairro da escola e demonstravam um enraizamento com a comunidade.
Os professores da outra escola trabalhavam em salas de aulas improvisadas. Algumas salas foram instaladas em baixo de tendas de lona. A sala dos professores fica no pátio externo sob uma mangueira e é protegida do sol por uma tenda de lona de quatro metros quadrados. Apesar das precárias condições de trabalho, todos demonstravam um intenso compromisso com a sua atuação profissional. Na relação professor e aluno, esses docentes destacaram a importância da afetividade acentuando a importância do engajamento e compromisso político com a realidade dos alunos.
Os educadores, como sujeitos vivos, apresentam em si contradições e idiossincrasias. Porém, os resultados encontrados na pesquisa não devem servir para desqualificá-los, mas sim permitir uma maior compreensão sobre como os professores têm construído os seus saberes sobre a violência física intrafamiliar contra crianças.
Os dados encontrados promovem outros questionamentos além dos que foram construídos no início desta investigação, tais como: qual o contato que os professores têm com as teorias que buscam compreender e desnaturalizar a violência física? Eles têm recebido ajuda para melhor interpretar tal fenômeno? Pelo que indicam os resultados da pesquisa, nem a formação inicial, nem a continuada têm tratado de discutir e aprofundar os conhecimentos sobre a questão da violência física intrafamiliar contra crianças. Eles lidam com essa situação por si mesmos.
Em relação às situações de violência física intrafamiliares sofridas pelos alunos, a formação ainda não parece ter conseguido oferecer contribuições significativas à pratica dos professores. Muito provavelmente, a falta desse suporte leva vários deles a atuarem de acordo com convicções adquiridas em sua experiência cultural, que está permeada de atitudes de aceitação e de submissão ao uso da violência física como método educativo para as crianças. Nesse sentido, entende-se que é fundamental que a formação inicial e a continuada contribuam para a compreensão sobre o fenômeno. Caberia à formação de professores fazer um contrapeso na balança e oferecer aos docentes conhecimentos sobre esse fenômeno de modo a ajudá-los a ultrapassar o nível de conhecimento sincrético ligado ao senso comum.
O enfrentamento desta questão impõe além do suporte teórico, que os professores recebam apoio institucional ao lidarem com tais situações de violência. Às instâncias governamentais faz-se exigências para que acolham as denúncias realizadas de maneira a dar resolutividade aos casos encaminhados. Nos que envolvem riscos à integridade física da escola ou do professor, caberia ao poder público oferecer proteção e suporte a eles. O acompanhamento do andamento dos casos denunciados pelos diferentes setores da Secretaria de Educação poderia propiciar aos educadores uma maior garantia de que os casos não cairão no esquecimento. O estudo de casos, as trocas de experiências entre os docentes e a supervisão continuada poderiam contribuir com a formação do professor, permitindo, assim, minimizar dúvidas e inseguranças sobre a forma de lidar com tais situações de violência.
Considerações finais
Considerado como posse do mundo adulto, o corpo da criança foi e continua alvo de múltiplas formas de violência. A humanidade, ao longo de sua história, desenvolveu um saber fazer para agredir o corpo das crianças. Esse saber fazer violento mantém-se na educação dos filhos. O uso da dor e do sofrimento físico para prevenir ou punir um comportamento tido como incorreto ou inadequado é ainda um recurso utilizado e legitimado na educação de crianças no espaço familiar.
A prática de bater para educar as crianças possui raízes muito profundas, é um costume arraigado na cultura. A aceitação dessa prática não se restringe apenas aos pais, muitos filhos demonstram serem tolerantes em relação às violências físicas que sofrem dos pais. A violência física costuma ser encarada pelos filhos como uma prática normal de disciplinamento parental.
É comum ouvir de crianças vítimas de violência física que elas mereceram apanhar. Elas dizem que não sentem dor, que os pais têm o direito de bater, e a criança deve apanhar quando fizer algo errado. A aparente conformidade dos filhos deixa evidente o poder da legitimidade conferida à prática de bater quando ela visa uma dita finalidade educativa. Mas não é sem sofrimento que as crianças convivem com os métodos educativos violentos. O sentimento de raiva, ambivalência afetiva e o ódio pelos pais não deixam de ocorrer. No entanto, são ocultados pela idealizada imagem da autoridade familiar. Ainda que seja regida com violência, arbitrariedade e injustiça, essa autoridade jamais deve ser contestada pelo bom e obediente filho. A idealização do amor familiar afirma de forma incontestável que os pais sempre fazem o bem a seus filhos. Ante esse amor idealizado, resta aos filhos aceitar a dor e o sofrimento perpetrados pelos pais, pois são para o seu próprio bem ou para o bem da sociedade.
A dor e o sofrimento são associados à idéia de um amor incondicional. Com a manipulação dos afetos a submissão das crianças é mais garantida. Nem raiva, nem revolta ela pode expressar, pois isso poderia comprometer a imagem do filho idealizado em nossa sociedade. O filho deve ser sempre dócil e incondicionalmente grato. Não é fácil se contrapor às práticas violentas da família, ainda porque historicamente elas são consideradas a mais correta forma de educar as crianças. As práticas educacionais violentas são constitutivas da identidade cultural dos professores pesquisados. Negar tais práticas significa ignorar a educação dada pela família de origem e, ao mesmo tempo, o modo que atualmente esses professores educam os próprios filhos.
Punir, disciplinar com violência, muitas vezes, é considerado pelos pais um sacrifício necessário à boa formação dos filhos. Bater nos filhos, dar palmada não constituem violência, mas sim um gesto de amor e de compromisso com a formação de pessoas honestas e de bem. As punições físicas são um mal necessário, pois com elas os filhos aprendem a respeitar as leis familiares e, por consequência, temer a leis sociais instituídas.
Ao utilizar a violência física como meio de coação e controle, a microestrutura familiar reproduz o modelo dominante das macroestruturas sociais. A violência é um meio, dentre outros, de estabelecer ou manter uma relação de obediência e de domínio sobre os considerados inferiores, e o modelo de socialização dominante na vida privada da família reflete as relações sociais da vida pública. Esse modelo de sociabilidade orienta-se no sentido oposto ao da emancipação e da liberdade dos sujeitos. Extravagante ou recatada, a violência sempre cumpre o mesmo papel, subjugar e controlar o outro. Portanto, são inconciliáveis os métodos violentos com a educação que tem como compromisso promover o desenvolvimento e a autonomia do sujeito. O que é considerado crítico no método educativo que se utiliza da violência física não é a sua intensidade, mas sim sua finalidade, que é controlar e manter as ações das crianças por meio da dor e do sofrimento físico.
Em um contexto de aceitação e naturalização da violência física, os professores pesquisados foram educados como filhos, e como pais educam os seus filhos. Conforme esse prisma, os professores têm percebido e lidado com o fenômeno da violência física intrafamiliar. O processo de produção de significados e sentidos da prática cotidiana do professor é atravessado pela emoção e pela sua história de vida. A relação de afeto com a figura parental que pune ou disciplina com violência leva a uma reorganização do conhecimento do professor sobre a violência física sofrida por seus alunos.
A educação escolar acumulou, ao longo de sua história, conhecimentos e práticas que permitem aos professores da atualidade educar as crianças por meios não-violentos. Sabe-se que o rompimento com as práticas punitivas e disciplinares que utilizavam métodos violentos não aconteceu sem resistência, mas, pouco a pouco, a escola vem erradicando essas práticas. Os professores construíram um saber fazer na educação de crianças que faz um importante contraponto na aceitação e naturalização do uso da violência física na educação das crianças dentro das relações familiares, e esse saber fazer da educação escolar precisa ser compartilhado com as famílias.
Os saberes desenvolvidos na educação escolar têm muito a contribuir para a superação das práticas violentas desenvolvidas na educação familiar. Os direitos da criança começam a ser respeitados na educação escolar. É preciso que esses direitos adentrem a porta dos lares brasileiros. Um dos grandes desafios da atualidade é assegurar que as crianças, tanto na sua vida pública como na sua vida privada, possam ser respeitadas como sujeitos de direitos na educação que recebem de sua própria família.
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